Obra é da professora do Instituto de Economia (IE) da Universidade de Campinas (Unicamp), Aline Miglioli, em parceria com a Universidade de Havana
Do Jornal da Unicamp | De Campinas (SP)
Em 2011, pouco mais de cinco décadas depois de a Revolução Cubana ter erradicado o déficit habitacional no país, o governo do então presidente Raúl Castro liberou a negociação de imóveis.
Fruto da reaproximação do país caribenho com os Estados Unidos durante o governo do presidente Barack Obama, o mercado imobiliário entrou em funcionamento aquecido pela expansão do turismo na ilha e impulsionou mudanças sociais, econômicas e espaciais, sobretudo em sua capital, Havana.
Professora do Instituto de Economia (IE) da Universidade de Campinas (Unicamp), Aline Miglioli examina o desenvolvimento desse comércio e seus impactos no livro Casa à Venda: turismo, mercado de imóveis e transformação sócio-espacial em Havana (editora Lutas Anticapital).
A obra baseia-se na tese elaborada por Miglioli ao fim de sua pesquisa de doutorado, iniciada em 2017 e concluída em 2022, no Departamento de Desenvolvimento Econômico do IE.
A pesquisa buscou analisar as contradições surgidas nesse cenário efervescente, no qual as moradias se tornaram uma possibilidade de ascender social e economicamente com mais facilidade do que ocupando um cargo no funcionalismo público ou participando de uma empresa mista.
Segundo a autora, esse novo tipo de mobilidade transformou a estrutura social da ilha.
“É muito raro encontrar um mercado em formação. Para mim, enquanto economista, foi um laboratório. Consegui observar como essa estrutura também se materializa no espaço”, conta.
CONSULTA AO POVO
O quadro observado por Miglioli começou a se concretizar em 2011, quando uma consulta pública promovida pelo governo cubano revelou a dimensão da vontade popular por poder comprar, vender e trocar sua casa.
Devido à preocupação com a especulação imobiliária, criaram-se mecanismos para restringir esse mercado.
“Para que as pessoas não passassem a acumular imóveis e a jogar com o preço do aluguel”, esclarece a autora.
A situação é “muito sui generis”, diz a professora.
Afinal, de acordo com a legislação, os cubanos só podem ter uma casa.
Se quiserem ingressar na economia do turismo, por exemplo, precisam adaptar seu único imóvel para ser um espaço de moradia e, também, de hospedagem.
“A partir dessa abertura, uma família que mora na periferia de Havana e conta com uma certa poupança – geralmente vinda de um parente que mora fora e envia dinheiro em dólar ou euro para casa – pode, por exemplo, comprar uma casa na região central da cidade e transformá-la em uma lanchonete. Então, em vez de depender somente desse familiar que mora fora, essa família agora vai conseguir ter acesso aos turistas que estão ali gastando bem e em euro ou dólar”, explica a pesquisadora.
A abertura de agências imobiliárias em Cuba, em 2013, serviu de marco inicial para a pesquisa de dados, um trabalho finalizado em 2020, com a eclosão da pandemia de covid-19.
Buscando responder por que as negociações com casas voltaram a ser permitidas na ilha, Miglioli resgatou a história da sua política habitacional, desde o século XIX, traçando o panorama que abre o livro.
Para contextualizar as transformações promovidas pelo governo comunista, a pesquisadora recuperou a herança colonial espanhola e a influência dos Estados Unidos entre 1930 e 1950.
“As pessoas no campo moravam em bohíos, construções de palha dos povos nativos, que não tinham esgoto, saneamento, nada.”
A política que acabou com os bohíos e proibiu as transações imobiliárias e o acúmulo de propriedades desgastou-se com o passar do tempo, aos humores da economia global.
A partir dos anos 1990, com o fim da União Soviética e diante dos embargos norte-americanos, o setor de construção do país caribenho sofreu um baque.
“Imagine alguém que recebeu uma casa em 1959. Desde então, tudo mudou: a família aumentou, ou diminuiu, quem era jovem, naquela época, envelheceu e passou a ficar sozinho com uma casa grande para cuidar. As pessoas queriam se reajustar”, narra Miglioli.
Já no século XIX, a reaproximação com os Estados Unidos ofereceu à população da ilha a chance de vislumbrar um caminho para financiar sua ascensão social.
PARCERIA COM A UNIVERSIDADE DE HAVANA
Uma parceria com o Centro de Estudos de Economia Cubana e com a Universidade de Havana permitiu a estadia acadêmica da pesquisadora em Cuba, em 2018.
Miglioli, que contou com o apoio também da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), concentrou seu trabalho de campo na capital do país, o epicentro das negociações imobiliárias.
“Havana é um local turístico e, portanto, um local onde esse mercado se relaciona com a possibilidade de usar o imóvel para ofertar um Airbnb, abrir uma pousada ou montar um restaurante.”
Seu trabalho combinou um levantamento sobre anúncios imobiliários e a realização de entrevistas com interessados em negociar habitações, com agentes imobiliários e com pesquisadores cubanos.
As transações, notou a autora, aconteciam de maneira peculiar.
“Existe uma rua, no centro de Havana, onde as pessoas levam cartazes e fotos das casas que querem vender. Pode-se negociar o imóvel ali mesmo.”
LEI DE MORADIA DE CUBA
Miglioli procurou analisar a relação do mercado com as mudanças – políticas, sociais, econômicas – então em curso no país. Buscou, ainda, avaliar se essa abertura poderia recriar ou resolver os problemas combatidos pelos revolucionários cubanos.
“Porque a Lei de Moradia de Cuba é muito simples: todos devem morar em uma casa e ninguém deve viver do aluguel de uma residência.”
A professora examinou o comportamento dos preços dos imóveis anunciados, além dos critérios de valorização.
Segundo seu estudo, para chegar ao preço final de uma casa, tornou-se comum embutir no valor uma projeção, baseada no cálculo do lucro que o proprietário obteria se continuasse com a casa.
Miglioli constatou, ainda, que o estilo arquitetônico e a localização da moradia, mais do que suas condições de conservação ou sua metragem, pesavam como critérios de valorização.
BAIRROS COMO MIRAMAR
Casas localizadas nos bairros onde as classes mais altas viviam antes da Revolução Cubana, notou Miglioli, voltaram a se valorizar, por se tratar de construções nas quais se pode ao mesmo tempo morar e instalar um negócio.
“Embora a revolução tenha combatido a especialização dos espaços, bairros como Miramar voltaram a concentrar aquelas pessoas que têm um acesso diferenciado a bens de consumo. Elas se diferenciam do cubano médio na renda, no jeito de se vestir, nas palavras que usam e nos lugares que frequentam.”
VOLTA EM 2023
Em 2023, com uma nova agenda de pesquisa, a autora voltou a Cuba para observar as transformações que a pandemia teria provocado no mercado e notou um impacto negativo, em comparação com a efervescência anterior.
Esse relato, constante do posfácio do livro, dá conta de que as negociações envolvendo imóveis passaram a ter uma nova motivação.
“As pessoas começaram a vender suas moradias com o propósito de migrarem. Cubanos de outras regiões, interessados em morar em Havana ou, principalmente, em acessar esses trabalhos que tinham ficado na capital, passaram a comprar essas casas. Já que o turismo tinha deixado de ser o propulsor do mercado imobiliário, a crise passou a ser.”
Imagem em destaque: a professora Aline Miglioli. Foto: divulgação Jornal da Unicamp
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