Crônica de um domingo de pandemia. Por Maria Marta

15 de março de 2020, o dia em que, contrariando todas as recomendações do planeta, pessoas foram à rua zombar, estimuladas por quem, diante da responsabilidade do cargo que ocupa, deveria sinalizar no mínimo precaução.


15 DE MARÇO DE 2020
Por Maria Marta Renner Weber Lunardon* | De Curitiba (PR)

15 de março de 2020.

É domingo e o meu País, assim como o resto do mundo, está mergulhado em notícias, recomendações e cuidados, à espera da explosão dos casos de contaminação pelo coronavírus. Tempo de pandemia.

As autoridades públicas, médicos e especialistas injetam na mídia, minuto a minuto, dicas, estatísticas, prenúncios, projeções e imagens, sempre com o intuito de acalmar o pânico que surge e mostrar que o “sistema” está preparado para receber os doentes quando o “pico” da doença chegar.

A recomendação é evitar aglomerações, eventos, reuniões, atos, manifestações e qualquer outro movimento que signifique juntar pessoas, suor, salivas, espirros e secreções que surjam de nossos corpos, na busca de procrastinar o “boom” que se espera, inclusive, de casos graves e fatais. São Paulo e Rio de Janeiro adotaram medidas mais que drásticas, porque a contaminação já passou a ser “autônoma”, ou seja, já se instala de pessoa para pessoa, independentemente de ter contraído a doença no exterior, nas suas origens.

Ora, pois. Estavam marcadas e incentivadas pelo Presidente Bolsonaro e seus apoiadores, manifestações em todo o Brasil, com o objetivo de “apoio” ao Presidente e repúdio ao Poder Legislativo e Poder Judiciário… Os termos e em que dimensão estas manifestações iriam ocorrer já estavam presentes nos conteúdos que circularam nas redes sociais, com seu tom radical, inconstitucional e absolutamente contrário ao Estado de Direito.

Duvidei – duvidei mesmo – que diante do sério risco de contágio, diante da chamada em rede nacional do próprio presidente da República, que estes movimentos (legítimos no entender dele) deveriam ser repensados.

Às vésperas, o Ministro da Saúde, seguido de outras autoridades e entendidos, reiteravam a necessidade de fugir de aglomerações…. conduta contrária ensejaria risco à saúde pública ameaçada já pela pandemia decretada.

Ora pois, mesmo assim as pessoas foram para as ruas, em várias localidades do Brasil, com cartazes, palavras de ordem, passeatas, velhos, crianças, moços, zombando, para não dizer outra expressão, das recomendações, ordens ou atos normativos expedidos em nome da saúde pública da coletividade.

Fiquei boquiaberta e estupefata… O que se passa com essa gente? Fechar Congresso, ofender o Supremo Tribunal Federal e seus integrantes, manifestar apoio a um Presidente que já está eleito e que governa aos trancos e barrancos, dando sempre a sensação de que não entendeu ainda a responsabilidade e seriedade do cargo que ocupa?

Mas as surpresas não paravam aí!!! O próprio o Presidente da República, que por ordem médica estava submetido à parcial isolamento porque inúmeros integrantes da comitiva que o seguiu aos EUA testaram positivo para o vírus, não aguentando a necessidade de alimentar o seu ego, vai para a rua, encontrar a galera, abraçar, beijar, compartilhar celulares para “selfies! , em atitude completamente oposta às orientações dadas pela equipe de seu próprio governo, não só a ele mas a todos os brasileiros.

Não há palavras para descrever tal desatino. Sinto-me enojada, o nojo veio aliado à paúra que já estava sentindo por seguir as notícias de desenvolvimento do vírus e do medo, legitimo então, por estar incluída no grupo de risco.
Tive vontade de chorar.

Como compreender tudo isto? Não tem definição. E quando não consigo entender, não  consigo me acalmar, nem usando técnicas que encontro dentro da minha consciência forjada, por estudo, por dever de ofício, pelo exercício de cargos públicos, nos princípios democráticos e de respeito às diferenças.

Não consigo deixar de ter taquicardia ao verificar que minhas amigas de décadas, que inclusive comigo cursaram Direito na Universidade Federal do Paraná, estão participando destas manifestações, mandando imagens e vídeos, do que acontece em vários cantos do País, arriscando SAÚDE sua e dos outros…

Ter instituições abertas e em funcionamento no Brasil custou muito caro, a memória volta e me transporto para os tempos de estudante na mesma UFPR, onde há não muito tempo (sob ponto de vista histórico) acompanhamos naquele ano de 1978, sob a Presidência de Raymundo Faoro, a Conferência Nacional dos Advogados, onde assistimos – participamos – de forte mobilização contra o Estado de Direito que estava em “exceção”, principalmente pela longa duração do AI-5. A “Declaração de Curitiba”, quando do término do evento, deixou consignado repúdio a este panorama.

Muito haveria de ser dito sobre esta Conferência que tem seus detalhes consignados nas páginas do “site” da OAB. Ali também se lê que ao final da leitura da Carta – e eu estava lá – o plenário se levantou aos brados de “Viva, Viva, Viva o Brasil, Viva o Estado Democrático de Direito Pleno, Viva”, e foi entoado com emoção o Hino Nacional Brasileiro.

A anistia veio mais tarde, tivemos vários tropeços, passamos por duros golpes em nossas convicções e vimos atordoados a queda livre de líderes que perderam credibilidade transformando-se, da noite para o dia, de estadistas reconhecidos mundialmente, em bandidos execrados em praça pública e, também, nos Tribunais.

Não entro nestes meandros, o que demandaria outros e vários escritos, mas ver meu povo brasileiro indo à rua para gritar contra a Constituição – num momento de caos mundial onde a cautela é o mínimo que se espera de pessoas sensatas – me leva às lágrimas.
O Congresso Nacional talvez não seja – ou não aparece – como instituição séria e comprometida com esta mesma Constituição cujos integrantes juraram defender no momento das respectivas posses. O Supremo Tribunal Federal talvez não atue – a todo o momento – de acordo com o que eu, fulano ou sicrano gostaríamos que julgasse, e nem deve…

Mas é o que temos de mais sólido para que a escuridão e a cegueira não nos consumam outra vez; este domingo para mim foi de luto, luto solitário, deprimente.

Vou tentar dormir e imaginar que toda esta energia possa ser canalizada para que se aprimorem estas instituições, para que – pelo menos por agora – a única fera que tenhamos que domar seja um bichinho microscópico cuja imagem se assemelha à Terra coberta por plantações de cogumelos em solo árido.

Como última lembrança, antes de adormecer, recordo do discurso profundo, contagiante e emocionado, feito pelo Professor Goffredo da Silva Telles Júnior, na abertura da Conferência da OAB em 1978, cujo título era mais ou menos: “Estado Democrático de Direito”.

Mestres como ele não me farão esquecer da luta, vou acordar amanhã mais disposta ainda a não me deixar abater, a mostrar aos meus filhos e netos que na vida – e na vida brasileira – nos tempos que estão por vir, haverá mais do que passagens vergonhosas como esta, haverá mais do que insanidade e irresponsabilidade.

Respiro. Eles estarão aí! Surge a esperança da segunda-feira! Vou dormir, finalmente.


*Maria Marta Renner Weber Lunardon, procuradora do Estado do Paraná aposentada, ex-secretária de Estado da Administração e da Previdência do Paraná (2004-2010), entre outras atividades.


Imagem em destaque: Bolsonaro à frente do Palácio do Planalto, estimulando aglomeração em período crítico. Foto: José Cruz/Agência Brasil


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Um comentário sobre "Crônica de um domingo de pandemia. Por Maria Marta"

  1. Feliz pelo antivírus(Macuco) repercutir tanta coisa boa como o texto de Maria Marta, cheguei a escutar a voz do pai dela.Mesmo longo ninguém pode argumentar que não dispõe de tempo para lê-lo.Parabéns para todos dessa REDE.

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