Uma faixa de proteção para o delta do São Francisco

Pesquisa na UFS define área livre de ocupação às margens do rio, para evitar erosão como a que afetou o povoado do Cabeço, em Brejo Grande


Por Abel Serafim, da Rádio UFS | De Brejo Grande (SE)

O mar foi avançando, avançando e avançando. E foi engolindo vestígios de um tempo descrito como de fartura por Maria dos Anjos, 70 anos. Eram peixes, camarão, massunim. “Naquele dia, quando eu perdi a minha casa, a minha vida…acabou tudo”, afirma a aposentada. “O mar destruiu toda aquela beleza que a gente tinha [lá].”

O povoado do Cabeço, em Brejo Grande, no Baixo São Francisco, no final dos anos 1990, ficou, em grande parte, submerso. Parte das famílias foi deslocada para outro local, também às margens do rio São Francisco – a comunidade do Saramém, a 107 quilômetros de Aracaju.

O fenômeno que levou ao despovoamento do Cabeço é chamado de erosão costeira, um processo natural provocado, entre outros fatores, pela elevação do nível do mar ou tempestades, porém intensificado por fatores antrópicos, como construção de barragens.

Com a instalação de barragens, por exemplo, a vazão fluvial diminui, consequentemente, o rio carrega menos sedimentos para a praia, como lama e areia. E, quando a praia mais perde do que recebe sedimento, ela registra um balanço sedimentar negativo. Uma das consequências disso é o avanço do mar em direção à linha de costa – limite entre o oceano e o continente.

EM MAIS DE 30 ANOS

Entre 1986 e 2017, enquanto a vazão fluvial foi reduzida em 24%, os trechos erosivos aumentaram 32% na linha de costa do delta do São Francisco, apontou estudo do oceanógrafo Iaggo Correia no Programa de Pós-Graduação em Geociências e Análise de Bacias (PGAB), da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Ainda de acordo com a pesquisa, a construção de barragens ao longo do curso do Velho Chico contribuiu para a devastação do antigo povoado do Cabeço.

A linha de costa, explicou Correia, é entendida como o encontro entre o oceano e o continente e pode ser definida por vários parâmetros, como a linha de vegetação (restinga e mangue, por exemplo) e linha de diferença de tonalidade entre a areia seca e a molhada – esta última foi escolhida como indicador para o trabalho.

Para evitar prejuízos semelhantes ao do Cabeço, a pesquisa, orientada por Ana Andrade e coorientada por Paulo Nascimento, buscou definir a largura de faixas de proteção na região costeira do delta, ou seja, delimitar, a partir da linha de costa, as distâncias até onde é possível ocupar uma área com segurança em determinado período.

Imagem de satélite do delta do Rio São Francisco

A área estudada engloba os municípios de Brejo Grande, Pacatuba e Pirambu, em Sergipe, e Piaçabuçu e Feliz Deserto, em Alagoas – eles formam a linha de costa do delta do São Francisco (o delta é uma formação caracterizada pelo acúmulo de sedimentos).

Segundo o oceanógrafo, a implantação de faixas pode reduzir riscos socioeconômicos e ambientais.

“A sugestão de limites para ocupação na área investigada pode favorecer a preservação de unidades ecossistêmicas, dunas e manguezais, que ajudam a conter o processo erosivo e a regularizar o balanço de sedimentos na zona costeira”, escreve.

MAIS PROTEÇÃO

Para determinar as faixas de proteção, foram utilizadas as taxas mais erosivas dos lados sergipanos e alagoanos do delta, o que, segundo Correia, “garante faixas mais protecionistas (recuadas da linha de costa – conservadoras, etc.), reduzindo a possibilidade de contato das ocupações humanas com o avanço do mar, ou seja, reduzindo riscos socioeconômicos às ocupações humanas”.

“A faixa de proteção costeira projetada a partir da linha de costa de 2017 para 20 anos, ou seja, para 2037, apresentou largura de 1.104 m para o setor 1 (lado alagoano). Porém, por estar localizada sobre a unidade de conservação (APA de Piaçabuçu), a faixa foi recuada ao limite mais interno da unidade de conservação. Para o setor 2 (lado sergipano), a faixa apresentou largura de 3.062 m, sem a utilização do critério [de recuo]”, apontou o estudo.

VARIAÇÕES

Diante das variações da dinâmica costeira da região decorrentes do aquecimento global e elevação do nível do mar, Iaggo afirma que as projeções devem ser revistas a cada cinco ou dez anos em um processo constante de monitoramento e replanejamento.

“As condições do oceano e do continente podem mudar completamente nesse período e, dessa forma, essa mudança pode fazer com que as tendências de taxas de erosão aumentem e se tornem mais intensas, levando a desatualização da faixa, por exemplo”, explica.

OUTRO CENÁRIO

A pesquisa validou a eficiência das faixas de proteção. Caso fossem implementadas em 1986, elas se manteriam recuadas à linha de costa de 2017, ou seja, o avanço do mar ao longo desses 31 anos não atingiria o posicionamento das faixas, protegendo a população dos processos erosivos, argumenta o oceanógrafo.

Além disso, a pesquisa mostrou que a atual localização dos moradores do Cabeço está adequada à linha da costa, ou seja, sem necessidade de recuo até 2037.

IMAGENS DE SATÉLITE

Os dados da vazão fluvial associados às análises a partir de imagens de satélite possibilitaram a compreensão da dinâmica da linha de costa do delta, acrescenta a professora de Geologia Ana Andrade. “O uso das imagens multitemporais permitiu quantificar as mudanças históricas na configuração da linha de costa do delta.”

A professora ainda destaca que o estudo de Correia pode subsidiar o planejamento ambiental a longo prazo diante de desafios na área para os próximos anos.

“Com as mudanças climáticas em curso, a previsão é de um aumento no nível do mar de cerca de 70 cm até 2100, segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).”

Ela complementa: “Além da subida do nível, tem-se a intensificação de eventos extremos, alteração na vazão fluvial.Tudo isso pode afetar a zona costeira”.

De acordo com o livro Panorama da Erosão Costeira no Brasil, publicado em 2018 pelo Ministério do Meio Ambiente, 40% dos mais de 8 mil quilômetros da linha de costa estavam em processo de erosão.

Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Geociências e Análise de Bacias, o Laboratório de Geologia Costeira e Ambiental (Lacma) foi criado, oficialmente, em 2012, mas já tinha atividades de pesquisa desde 2006.

Formado por oito pesquisadores (entre alunos, professores e colaboradores), o Lacma atua em quatro linhas de pesquisa: evolução da linha de costa, morfodinâmica de praias arenosas, geologia-geomorfologia do Quaternário costeiro e análise ambiental da zona.

O trabalho de Iaggo é um dos estudos sobre erosão costeira desenvolvidos no laboratório.

Mestre em Geociências, João Paulo Santos estudou o assunto nas praias do litoral sul de Sergipe. “O laboratório foi muito significativo porque forneceu, além da orientação da professora [Ana Andrade], todo o equipamento e entendimento técnico para desenvolvermos esses projetos”, destaca.


Imagem em destaque: os efeitos da erosão no povoado do Cabeço. Foto de divulgação da pesquisa




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