Quilombolas, indígenas e caiçaras do Vale do Ribeira liberados para plantar roças tradicionais

Norma especial para período de pandemia de covid-19 reduz burocracia, para garantir segurança alimentar e fonte de renda a comunidades tradicionais.


Do Instituto Socioambiental (ISA) | De Eldorado (SP)

As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, no sudeste de São Paulo, conquistaram junto ao governo de São Paulo norma que dispensa licenciamento prévio para o manejo da mata com roças tradicionais de coivara diante da pandemia da covid-19.

A resolução que autoriza o manejo foi publicada em 18 de abril pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, após envio de ofício subscrito por 23 associações quilombolas que contaram com assessoria da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone) e do Instituto Socioambiental (ISA).

No ofício, as organizações solicitaram que as roças tradicionais fossem autorizadas independente da expedição prévia de licenças, uma vez que a pandemia impede a realização da burocracia normalmente exigida.

Segundo a secretaria, a resolução “visa a segurança nutricional de povos e comunidades tradicionais, bem como a permanência em seus territórios por conta da necessidade de isolamento social em razão do COVID-19.”

A autorização tem, de fato, importância fundamental para a segurança alimentar dos quilombolas e outros povos tradicionais do Vale do Ribeira, como indígenas e caiçaras, que também foram contemplados pela resolução e agora podem plantar, até o fim de 2020, seus alimentos sem sofrer sanções do governo paulista.

“É uma conquista muito grande. O povo precisa plantar nesse momento, um momento que evidencia a problemática de todos os territórios. As comunidades estão isoladas e em territórios que em muitos casos não estão regularizados. É preciso conceder às comunidades os direitos que já possuem”, frisa o quilombola Rafaela Miranda, do Quilombo Porto Velho, no Vale do Ribeira, e advogada da Eaacone.

As comunidades estão em quarentena, sem trânsito para as cidades mais próximas para evitar a contaminação pelo novo coronavírus. Os quilombos Ivaporunduva, Galvão, São Pedro e Cangume, por exemplo, realizam controle de acesso às comunidades por tempo indeterminado.

São muitos os quilombolas que fazem parte do grupo de risco e a infraestrutura de saúde para atender casos de covid-19 na região é precária. Ao mesmo tempo, os contratos de entrega de alimentos para a merenda escolar foram suspensos pelas prefeituras, assim como estão suspensas as atividades de turismo de base comunitária, o que prejudica diretamente a geração de renda das comunidades.

“Existe uma população numerosa que é idosa, está afastada do SUS, o transporte é precário. Por isso é tão importante garantir a segurança alimentar nas comunidades”, afirma Miranda.

COMO ERA, COMO FICOU

Antes da resolução (número 28/2020) cada nova roça, que tem no máximo um hectare, deveria ser objeto de licenciamento prévio.

Ou seja, cada família quilombola que quisesse roçar deveria instruir um requerimento de licença à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), com auxílio da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) ou da Fundação Florestal, para, após a concessão da autorização, iniciar o manejo.

Para as comunidades, o procedimento é moroso e demasiadamente burocrático, e em determinadas situações a autorização chegava após o período de plantio, inviabilizando o manejo.

Agora, ao invés da exigência de autorização prévia, as comunidades devem comunicar posteriormente as roças que foram efetivamente realizadas neste ano de 2020.

Contudo, as comunidades tradicionais localizadas dentro do perímetro de unidades de conservação, com exceção daquelas localizadas em áreas de proteção ambiental (APA) deverão realizar um pedido simples, sem as burocracias normalmente exigidas para autorização pelo órgão gestor da Unidade de Conservação.

Para as comunidades afetadas por unidades de conservação há, ainda, outra exigência, pois devem ter sido “devidamente reconhecidas pelo órgão gestor mediante laudo antropológico ou outro documento oficial”.

“O contexto de conflito entre comunidades tradicionais e órgãos ambientais, bem como a morosidade estatal no reconhecimento das identidades e dos direitos de povos tradicionais pode deixar algumas comunidades fora do contexto de autorização”, adverte o advogado Fernando Prioste, do Instituto Socioambiental.

PLANTIO DAS ROÇAS

A realização das roças deve observar algumas condicionantes para que esteja contemplada pela resolução.

Cada área de manejo não deve ter mais de um hectare, a distância entre as roças não pode ser inferior a 100 metros, não podem ser realizadas em áreas de preservação permanente e só podem ser feitas em áreas de matas secundárias que estejam, no máximo, em estágio médio de regeneração.

Todavia, algumas comunidades podem ficar fora dos critérios de autorização prévia. Só podem realizar as roças de coivara as comunidades que contêm com, no mínimo, metade de suas áreas cobertas por mata nativa.

Como a regularização dos territórios de povos e comunidades tradicionais ainda é um sonho para muitas comunidades, há situações em que pode não haver espaço suficiente para o manejo, e outras situações em que a degradação do território por terceiros não quilombolas destruiu grande parte da área de mata.

“A nova resolução é válida apenas para este ano de 2020, e está diretamente relacionada com o contexto da pandemia da Covid-19. Assim, ano que vem as comunidades devem voltar a seguir o mesmo rito anterior para iniciarem novas roças”, afirmou Prioste. “Espera-se que a experiência a ser vivida neste ano seja mais um elemento para convencer o Estado de que o manejo tradicional da mata através das roças de coivara merece tratamento diferenciado e simplificado para autorização.”


Imagem em destaque: O quilombola Urias Mota, do Quilombo São Pedro. Foto de Claudio Tavares/ISA


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