‘Rede de Sementes’ une famílias quilombolas pelas florestas do futuro

Programa no Vale do Ribeira (SP) assegura a conservação da Mata Atlântica. Confira o depoimento de famílias participantes


Por Andressa Cabral Botelho, do Instituto Socioambiental (ISA) | De Eldorado (SP)

Sair para coletar sementes florestais mudou a realidade de 42 quilombolas do Vale do Ribeira, no sudeste do estado de São Paulo.

E despertou um senso de cuidado coletivo sobre o mundo.
É um trabalho que fortalece laços e permite que os quilombolas se reconheçam como importantes agentes na restauração florestal.

Essas famílias fazem parte da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, projeto do Instituto Socioambiental (ISA), organização não-governamental.

Localizada numa região da Mata Atlântica onde 80% da mata segue conservada, a Rede de Sementes do Vale do Ribeira atua há quatro anos na coleta de sementes nas comunidades quilombolas André Lopes, Bombas, Maria Rosa e Nhunguara, nos municípios paulistas de Eldorado e Iporanga.

Os quilombolas dessas comunidades mantêm uma tradição ancestral de cuidado com o território em que vivem e possibilitam que outras localidades também possam ser cuidadas por meio do plantio dessas sementes.

Atualmente, 42 quilombolas participam da rede e atuam na coleta, manejo e comercialização de sementes da Mata Atlântica — mas esse número é muito maior.

FAMÍLIAS

Trabalhar com sementes não envolve apenas as pessoas que são membros da rede, mas engloba cônjuges, filhos e filhas — entre crianças, adolescentes e adultos -, noras e genros, que participam de alguma etapa do caminho das sementes entre a coleta e a entrega final.

Assim acontece com Donaria Messias dos Santos, a Preta, quilombola do Nhunguara.

Ela faz parte da rede desde 2018. Em sua casa recebe ajuda de seu marido e seus dois filhos que moram com ela e a acompanham nas coletas que realiza nos finais de semana.

“Agora, até a minha nora tem interesse em saber mais e quer ajudar limpando as sementes”, contou. Além deles, ela sempre coleta com Ivo Pedroso, Nilza Oliveira e a irmã Omelina França, ambos do quilombo André Lopes.

mãos da quilombola Donaria separam sementes

As mãos de Donaria separando as sementes. Foto de Bianca Tozato-ISA

Conhecer a flora local, acompanhar os períodos de floração, frutificação e dispersão das sementes e observar fatores externos, como excesso ou falta de chuva ou ataque de pragas, por exemplo, são ações que permite que quem faz a coleta possa avaliar como esses fatores podem impactar a coleta daquele ano.

SABERES TRADICIONAIS

O conhecimento dessas técnicas de manejo de paisagem e de saberes tradicionais quilombolas do Vale do Ribeira — o Sistema Agrícola Tradicional (SAT) — foi reconhecido em 2018 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial cultural do Brasil, valorizando, assim, o trabalho daqueles que coletam sementes.

A percepção do ambiente hoje é uma mudança significativa que os coletores do quilombo de Maria Rosa notaram desde que ingressaram na rede, em 2019.

Antes de participar, o quilombola Lourenço Dias da Mota confessou que não prestava atenção e que não tinha tanta curiosidade em conhecer as espécies. “A gente passava e não prestava atenção nas sementes. Mas agora a gente anda mais atento na mata ou na estrada, procurando por alguma coisa. E passamos a adentrar mais na mata atrás das sementes”, destaca.

Zélia e o seu esposo Maurício Pereira Pupo foram um dos primeiros quilombolas a fazerem parte da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.

Hoje, a família tem papel importante dentro do grupo, por explicar sobre a importância da coleta de sementes, mas, inicialmente, Zélia viu com desconfiança o trabalho.

Após conversas e o convite para a viagem de intercâmbio entre coletores com a Rede de Sementes do Xingu, em 2018, ela mudou de visão do trabalho desenvolvido e passou a participar e a convidar outras pessoas. “Hoje, vendo a questão do desmatamento e sabendo que temos essa riqueza [nos quilombos], por que não compartilhar com outras pessoas?”

Durante as saídas, eles são abordados na estrada por passantes curiosos com o trabalho, achando que as sementes servem para a alimentação.

Maurício conta que, ao explicar o porquê da coleta de sementes e a importância do trabalho deles com o manejo da paisagem e que as sementes vão ajudar na restauração florestal, são elogiados pela iniciativa.

“Acho importante termos algum tipo de identificação para que as pessoas saibam que fazemos parte da Rede de Sementes. Muitas olham desconfiadas quando nos veem com os cortadores achando que vamos desmatar a mata e acabam mudando de ideia quando nos escutam dizendo sobre o que é o trabalho da rede”, aponta.

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Fia, com a mãe Zélia, enquanto relembrava o seu início na Rede de Sementes. Foto: Bianca Tozato/ISA

Geisieli Carina dos Santos Pupo, a Fia, é uma das filhas mais novas de Zélia e Maurício. Ela é, também, a coletora mais jovem da Rede de Sementes, com 24 anos. O trabalho começou quando passou a ajudar a sua mãe no trabalho.

A coleta é uma atividade familiar, pois seus irmãos e tios também coletam sementes ou fazem alguma atividade, como a limpeza das espécies. Em 2021, dois anos após Fia começar a acompanhar a família, ela fez sua primeira coleta e entrega de forma independente. A partir desse momento, ela também passa a participar das atividades como coletora.

Além da caquera, a família também coleta algodoeiro, assa-peixe, feijão guandu, goiaba, jurubeba e urucum, disponíveis no próprio quilombo André Lopes, e olho de cabra, que é encontrado a uma distância maior.

A presença de Fia no grupo inspira um sentimento de continuidade e renovação, pois mostra que, além dos mais velhos, a juventude também está preocupada com o cuidado com a Mata Atlântica e a restauração.

JUVENTUDE QUILOMBOLA

A participação e engajamento da juventude quilombola tem aumentado cada vez mais.

Na última Feira de Troca de Sementes e Mudas das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, em 2019, eles formaram 30% do público total. A juventude quilombola também participou da escrita do livro ‘Roça é Vida’, que aborda de forma poética a importância do Sistema Agrícola Tradicional.

A família de Fia esteve presente na edição de 2018 e lembrou com saudade da possibilidade da troca de sementes e afetos entre as pessoas participantes: “Foi bom para conhecer novas sementes e aprender mais com as pessoas. Fizemos trocas de sementes e mudas e algumas delas plantamos aqui no quilombo, como laranja e juçara”.


Imagem em destaque: Preta, enquanto limpa sementes no Quilombo Nhunguara. Foto de Bianca Tozato (ISA)




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