Uma crônica sobre como as restrições e a correria atual, por conta do coronavírus, lembram preocupação semelhante vivida na infância, à iminência de um período de exceção. Havia, ao menos – além do papel higiênico como hoje – um estoque de “leite moça”.
A “PANDEMIA” E AS “CADEIAS DA LEGALIDADE”
Por Maria Marta Renner Weber Lunardon* | De Curitiba (PR)
Estamos em 2020 em plena decretação de PANDEMIA, pela Organização Mundial de Saúde, em face do coronavírus (ou COVID-19). Tenho 64 anos e estou, por conta disto, entre os idosos ou grupo de maior risco para contaminação, junto com meu companheiro que tem quase 67…
Há uma sensação que gera medo e ansiedade, pelo excesso e velocidade com que informações – nem sempre completas ou verdadeiras – circulam por todos os meios de comunicação, redes sociais e grupos de aplicativos.
Há, por outro lado, desconfiança quanto ao modo de agir em determinadas circunstâncias, porque o tal de vírus ainda é um “desconhecido” para a comunidade médica e científica, principalmente no que se refere ao tempo de transmissão, o tempo de se isolar, quem e que procurar se houver sintomas; todos se esforçam incessantemente para explicar tudo isto, o que, ao contrário do que deveria ser, gera na cabeça da gente uma miscelânea de sentimentos e apreensões.
Manchetes alarmistas, receitas inusitadas, orientações sensatas de dirigentes públicos e formadores de opinião fazem com que este seja o assunto do momento.
Muito interessantes e engraçadas são as inúmeras piadas que vão surgindo, demonstrativo claro de que ainda somos esse tipo de povo, zombeteiro, que não perde a oportunidade de fazer gozação sejam quais forem os temas, dos mais leves aos mais chocantes e graves. Esse espírito e o sorriso que estas pessoas engraçadas nos arrancam – até sem querer – são bons, sob meu ponto de vista, nos aliviam, amenizam e cortam este processo de consciência coletiva geral de “caos”, que no fim serve tanto para baixar as imunidades como deixar de lavar as mãos…
Hoje pela manhã, entre centenas de mensagens, comunicados e noticiários, escutei parte de um vídeo onde uma jovem (influenciadora) tentava incutir calma aos seus seguidores. Uma das suas indignações era quanto à correria do povo para comprar coisas, estocar em casa, com receio, não totalmente infundado, digo eu, de um desabastecimento. Disse que mandaram para ela mensagens dando conta de que um casal foi ao atacado e abasteceu-se de mais de 900 rolos de papel higiênico…
Logo me veio à memória incidente muito remoto, que aconteceu quanto eu tinha 5 ou 7 anos…
A lembrança é tão vívida e ilustra de forma tão veemente a nossa falta de experiência como povo para lidar com guerras e grandes catástrofes (graças a Deus) que não hesito em compartilhar.
Minha família residiu em Porto Alegre, até que em 1966 adotamos o Paraná como lar. Morávamos no chamado centro Edifício Cruz Alta, Praça Conde de Porto Alegre, a um quilômetro, mais ou menos, da Praça da Matriz, onde está localizado o imponente Palácio Piratini, sede do Executivo Riograndense.
Acontece que era o ano de 64, em pleno movimento revolucionário que contou com resistência forte de muita gente. Queriam a permanência do Presidente “Jango” Goulart no poder, pelos mais diversos motivos, mas, principalmente, porque com ele compartilhavam ideais e convicções. A liderança mais forte lá dos pampas, com reflexos e apoio em outros entes da federação, era o deputado federal Leonel Brizola. Antes o Brizola era governador e conduziu no Rio Grande o primeiro movimento (cadeia) pela legalidade, em 1961.
Nesta época da revolução de 64 ele não mais governava o Estado, mas diversos líderes, apoiados também pelo então prefeito da capital gaúcha, Sereno Chaise, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), na iminência da deposição do Jango e de sua chegada ao Rio Grande do Sul para resistir, inclusive com a força das armas, ocuparam-se de formar a “Segunda Cadeia Radiofônica da Legalidade”, utilizando-se da Rádio Difusora de Porto Alegre, para difundir notícias e diretrizes. Então, em 1964, enquanto transcorria o golpe militar de 31 para 1º de abril, pretendia-se evitar, ou pelo menos adiar, a chegada dos militares ao poder.
Bem, sobre estes fatos históricos foram publicados muitos livros e existem dezenas de registros na internet, para o que basta acessar o “google”…
Mas o que juntou na minha cabeça o “coronavírus” com a “segunda cadeia da legalidade”????
O papel higiênico.
Como disse, morávamos num bom apartamento situado no 10º andar do edifício Cruz Alta e entre as peças amplas e arejadas havia uma lavanderia, enorme, com chão de ladrilhos pretos e brancos, tal como um tabuleiro de xadrez; bem na frente, uma janela grande, sem nenhuma cortina, onde se vislumbrava a paisagem da cidade ainda não coberta em seus horizontes por outros tantos arranha-céus, e na paisagem, bem delineado, os contornos da abóbada do Palácio Piratini, da Catedral e outros prédios históricos da Praça da Matriz.
Encostado na vidraça translúcida, um baú branco, também grande, daqueles que tem a tampa para levantar, onde eram guardados os brinquedos, jogos, bolas e nossas bonecas. Era nosso espaço, meu e da minha irmã Carmen, quase três anos mais nova…
Lembro, como se fosse ontem, que meu pai, que, aliás, tinha sido fiel aliado e alto funcionário do governo Brizola, veio da rua com suprimentos muito além – mas muito além mesmo – daqueles que normalmente nos cabiam, porque não éramos uma família abastada. Arroz, feijão, farinha, gordura de coco (minha mãe só cozinhava com ela), ovos, café, café solúvel, alguns enlatados, e…. papel higiênico, aos montes…. Da mesma maneira foram comprados e devidamente estocados nos armários da cozinha e despensa, dezenas de latas de leite condensado “leite moça”, para total desagrado da minha mãe que controlava rigidamente nossa alimentação, não nos proporcionando iguarias açucaradas, a não ser nos domingos e nas ocasiões festivas.
Recordo nitidamente as explicações do pai, com sua vasta cabeleira castanha e seus olhos verdes: “olha, vai ter uma guerra, a gente está perto do palácio, as crianças não podem mais brincar aqui, canhões e outras armas podem ser disparados para a área da praça da matriz e nós estamos na mira… As ruas serão ocupadas, os mercados vão fechar, não vamos poder sair de casa… Não cheguem perto das janelas, é perigoso…”
Eu não entendi nada, mas fiquei com medo. Não muito, só um pouquinho, porque o pai estava ali e se ele estava ali nada ruim desse tipo ia nos acontecer. Pensei que de qualquer jeito meu vô tinha um Frigorífico e salsicha não ia faltar, menos mal…
Assim, lá se foi a possibilidade de abrir nosso baú, e dali tirar nossos brinquedos; fomos isoladas em outros cantos da casa para nossas atividades escolares e brincadeiras, especialmente o chamado “quarto da empregada” onde residia Tereza de olhos tristes, que adorávamos, quarto cuja janela dava para o extremo oposto à vista do Palácio Piratini.
Quanto ao leite condensado, a explicação do pai foi muito certeira: “ora, não se trata de fazer doces ou pudins, leite condensado é leite e diluído substitui o leite para que possamos, se for o caso, resistir sem ir ao mercado por dezenas de dias….. bem alimentando as crianças.”
Não tenho recordação de como aquilo tudo terminou à época, se tomamos aquele leite doce mesmo, se todo o papel higiênico foi consumido com a parcimônia que nos era imposta por nossos pais… só sei que a tal cadeia ou movimento da legalidade, pela segunda vez organizado no Rio Grande, não deu certo. Jango foi se exilar no Uruguai, os militares tomaram o poder e vieram os Atos Institucionais com a mesma força que meu pai – na sua visão cautelosa e de proteção à família – imaginava pudesse advir das forças militares “revolucionárias” diante de nossos olhos e através do vidro da lavanderia do Edifício Cruz Alta.
Acabou a necessidade de estocar comida em 64. A revolução continuou com outros contornos, dramáticos é certo, mas sem influência direta em nossos folguedos e brincadeiras.
A pandemia do coronavírus, pelo visto, está só começando. O alarde e o medo são maiores do que o da gripe H1N1 e vem também porque estamos cercados por todos os lados de vírus, de epidemias: é sarampo, é dengue, é chicungunha, é a volta da aids é a violência… e tudo o mais que nos aterroriza a cada telejornal, a cada conexão com o facebook ou instagram… Como se diz na minha casa quando começa o Jornal Nacional ou o Fantástico… “ é hora da desgraça”…
O que virá pela frente não sabemos, só sei que não parece muito longínqua a necessidade que poderá vir a ser real, de estocar na nossa cozinha ou lavanderia e onde mais couber, alguns alimentos básicos, remédios, enlatados, material de limpeza pesada, álcool gel e…. papel higiênico….
Curitiba,13 de março de 2020.
Maria Marta Renner Weber Lunardon
*Maria Marta Renner Weber Lunardon, procuradora do Estado do Paraná aposentada, ex-secretária de Estado da Administração e da Previdência do Paraná (2004-2010), entre outras atividades.
Imagem em destaque: controle sanitário na Itália, neste mês. Fonte: fotospublicas.com
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