A força, coragem e persistência das mães de crianças com microcefalia

Mulheres de Pernambuco se mobilizam para cobrar do poder público e da sociedade o tratamento e o apoio necessários à qualidade de vida dos pequenos e pequenas. E as dificuldades são muitas

Da Revista Garra | De Recife

Quase três anos depois do início do surto do zika vírus no Brasil – sobretudo no Nordeste – as mães das crianças que nasceram com microcefalia têm recorrido à mobilização para garantir qualidade de vida a seus filhos. Com muita força, coragem e persistência essas mães enfrentam batalhas diárias para enfrentar as adversidades.

No início, controlar o choro contínuo, a irritabilidade e falta de sono, as convulsões e crises epiléticas foi um primeiro desafio. Era preciso entender a crise, achar o profissional que pudesse explicá-la, adaptar ao melhor remédio, ter condições de pagar pelo remédio se não estivesse disponível nas farmácias públicas. Depois, as crianças apresentaram disfagia grave, que é a dificuldade de engolir o leite materno e o alimento pastoso. Muitas tiveram que colocar uma sonda nasogástrica ou gástrica para receber apenas alimento líquido. A cirurgia demandava vagas nos hospitais, o que era difícil na rede pública. Além disso, os leites são especiais e caríssimos, nem sempre acessíveis a muitas famílias.

Uma mãe de uma criança com microcefalia, hoje com 2 anos e 4 meses, resume como está sendo o dia a dia. “Nós continuamos enfrentando problemas sérios. A minha filha, por exemplo, está com uma sonda provisória que tem que ser trocada por uma definitiva com urgência. Ela está correndo perigo de vida por causa disso, não temos recursos para comprar uma sonda e o governo não nos fornece. Entrei com uma ação no Ministério Público, mas ainda estamos aguardando resposta”, afirma ela, que preferiu não se identificar à reportagem da Revista Garra.

REABILITAÇÃO

As crianças com 2 anos de idade apresentam atraso no desenvolvimento neurológico, correspondente a uma criança de três meses de idade. Com problemas cognitivos, muitas crianças não reconhecem as próprias mães. As mães lutam para manter os filhos nas clínicas de reabilitação, as quais minimizam as sequelas do atraso. Além da escassez de vagas, tais clínicas não têm se disposto a continuar o tratamento dos pequenos pacientes.

A antropóloga Soraya Fleischer explica: “Já tinha sido difícil conseguir vagas nessas clínicas, privadas ou públicas. Mas, na atualidade, o desafio tem sido se manter inscrito nelas. Algumas clínicas e hospitais, não vendo muito ‘progresso’ nestas crianças, têm decidido que elas não são a prioridade do atendimento e têm lhes dado ‘alta’. Mas é alta sem cura. Os parâmetros de ‘progresso’ em algumas clínicas são, por exemplo, a motricidade e não as conquistas cognitivas”. A pesquisadora vem acompanhando a trajetória de vida das mães e seus filhos e filhas vítimas da Síndrome Congênita do Zika Vírus, nome científico da microcefalia.

Muitas dificuldades, inclusive, permanecem desde o início da epidemia da síndrome. Circular pelo Recife no transporte coletivo, por exemplo, é um grande desafio. “Não consigo andar mais de ônibus. Fiquei traumatizada e com síndrome de pânico depois de uma confusão com o motorista que não queria abrir a porta do meio do coletivo para eu subir com a minha filha e acabou chamando uma viatura de polícia, depois de ter discutido e sido muito grosso comigo. Além disso, vários ônibus queimam a parada ao nos avistar e os passageiros não nos dão os assentos preferenciais”, denuncia a mão.

Outro desafio constante tem sido a rede de apoio. Muitos maridos deixaram a família, alegando incapacidade de cuidar de uma criança especial. Famílias inteiras apresentaram indisposição e preconceito, retirando-se do cuidado diário com transporte, alimentação e carinho.

DESMONTE DO SUS

As mães e crianças também sofrem devido ao abandono do poder público. No nível federal, a fragilidade governamental é evidente.

O SUS e a saúde da população deixaram de ser uma prioridade orçamentária do governo golpista. Então, a desmobilização dos recursos e também da vontade política, que começa em Brasília, vai se espraiando e contaminando as esferas estaduais e municipais com muita força.

“Saneamento básico, educação em saúde, prevenção das doenças, urbanização, moradia digna, postos de trabalho – todas iniciativas que, diretamente, se relacionam com os vetores das epidemias como zika, dengue, febre amarela e também se relacionam com a qualidade de vida e o bem-estar das pessoas, são iniciativas de responsabilidade da esfera federal. Mas as epidemias e suas consequências deixaram a agenda do governo federal faz algum tempo”, lembra antropóloga Soraya.

Quanto ao governo do estado de Pernambuco, a pesquisadora defende maior investimento na rede estadual de centros especializados em reabilitação, centros de referência de assistência social, escolas e outros serviços com a interligação, abertura de vagas para essas crianças e suas famílias e a contratação de mais profissionais especializados (terapeutas, assistentes sociais, neurologistas, psicólogas).

“Pelo que as mulheres me contam, o governo municipal tem conseguido ser o mais atuante, mais acessível. Uma rede de serviços foi minimamente organizada e mais recentemente houve o lançamento do projeto de criar no Hospital Maria Lucinda um centro de referência para a microcefalia e outras doenças raras”, salienta a pesquisadora.

MOBILIZAÇÃO

Mas essas mães não desistiram de seus filhos e começaram a se mobilizar. Primeiro nas salas de espera dos serviços de saúde, depois nos corredores das clínicas de reabilitação, por fim nas organizações não governamentais que abraçaram a causa. Elas passaram a ir às audiências públicas, aos gabinetes dos deputados no Congresso Nacional, às farmácias públicas. Reclamam que um remédio não chega, que um hospital não está atendendo e que um projeto de lei precisa de suporte.

“As mulheres criaram outras redes, por falta de familiares, com os profissionais de saúde, as assistentes sociais e terapeutas de reabilitação e, mais do que tudo, com as outras ‘mães de micro’. Elas mantêm grupos de WhatsApp que são super assíduos, é um meio de comunicação importante onde podem pedir informações, dar conselhos, desabafar e se consolar quando preciso. Mas também onde podem circular dicas de eventos, festas, diversão ao redor dos bairros da cidade. É uma sociabilidade intensa, que vai além da microcefalia, que se tornou amizade e força política”, destaca a antropóloga.

Imagem em destaque: a antropóloga Soraya Fleischer, que acompanha mães | Foto da Revista Garra


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