As escolas de samba como espaço de resistência à ditadura

Reportagem da Agência Brasil, em série especial sobre os 60 anos do golpe de 1964, traz histórias de como sambistas driblaram a repressão e, muitas vezes, ousaram com enredos contestadores na avenida


Por Cristina Indio do Brasil, repórter da Agência Brasil | Do Rio de Janeiro (RJ)

Consideradas território de alegria, diversão e preservação cultural, as quadras das escolas de samba já foram locais de dor e sofrimento.

Durante os anos do regime militar, algumas agremiações acabaram se transformando em espaços de resistência da cultura e das liberdades sociais para se contrapor às ações de agentes do governo federal.

A repressão e a censura se impuseram às atividades dos sambistas.

Até aquele momento as batidas policiais que sofriam eram por discriminação porque os sambistas eram considerados uma categoria marginalizada da sociedade.

Com a ditadura, a situação se agravou.

Escolas como Vai-Vai, Camisa Verde e Branco e Unidos do Peruche, em São Paulo, e Império Serrano, no Rio de Janeiro, além de verem suas quadras invadidas, tiveram que buscar meios para manter seus enredos e as atividades em comunidade.

[Nota da Rede Macuco: em agremiações tradicionais de outras localidades, como Santos, Vitória, Porto Alegre, Londrina, sambistas também tiveram de driblar adversidades impostas pelo regime]

Aos 77 anos, o jornalista Fernando Penteado, atual diretor cultural da Vai-Vai, considerado um griô ou griot do samba, que na cultura africana é a pessoa que mantém viva a memória do grupo, contando as histórias e mitos daquele povo, lembra que na década de 1960 o samba era meio marginalizado e não tinha a aceitação pública que tem atualmente.

Mas, durante o regime militar a perseguição ficou maior, especialmente contra compositores que eram mais de esquerda política.

BIXIGA, CONTESTADOR

Segundo Penteado, o Bixiga, onde a escola foi fundada, era um bairro contestador, o que a tornou mais visada pela repressão.

“O samba na época era marginalizado, então, o ensaio, independentemente se era na época da ditadura ou não, quando a gente via uma viatura de polícia chegar no domingo à tarde ou em uma quinta-feira, sabíamos que eles iam reprimir”, conta, à Agência Brasil.

Ele relatou ainda que, no fim da década de 1960, quando componentes da escola faziam um ensaio, em um domingo, em uma praça da região da Bela Vista, a polícia chegou com violência.

“Entraram para dentro, furaram os instrumentos. Isso era em um domingo. Na quinta-feira, nós estávamos lá de novo ensaiando com os instrumentos que eles furaram, e a gente encourou [botar peça de couro no instrumento] outra vez. Assim foi. Alguns compositores, que eram presos por causa de samba-enredo, eram presos de noite e soltos de dia e iam fazer samba outra vez. A contestação sempre houve”, diz.

ENCONTROS DE SAMBA

De acordo com Penteado, outra forma de resistência foram os encontros de samba que algumas escolas começaram a realizar.

O primeiro foi da Camisa Verde e Branco, que recebia estudantes de uma universidade próxima.

“Eles não iam mais para os bares porque eram fechados e começaram a vir para o sambão. Aí foi criado o samba universitário”, relembra.

O griô acrescenta: “A nossa resistência [na escola Vai-Vai] era fazer o que não podia. Diziam ‘não pode ensaiar na Rua 13 de Maio’, era lá que a gente ia ensaiar. Sabe aquele moleque malcriado, que na minha época, já estou com 77 anos, era buliçoso. Sempre tinha alguém para nos defender, principalmente jornalistas. A gente escrevia letras de enredos com outras palavras e aí passava [na censura]”.

GERALDO FILME

Ainda conforme Penteado, quando a Vai-Vai se transformou de cordão carnavalesco para escola de samba, teve a integração do compositor Geraldo Filme, que era do Peruche.

Ele, o jornalista Dalmo Pessoa e a escritora e artista plástica Raquel Trindade formaram o departamento cultural.

“Pessoas da ultraesquerda formaram, aqui na Bela Vista, no Vai-Vai, o primeiro departamento cultural de uma escola de samba. Isso foi em 72, 73, dentro do regime militar. Eles começaram a fazer enredo no Vai-Vai com essa perspicácia de maquiar o enredo”, narra.

MOMENTOS DE APREENSÃO

O compositor Cláudio André de Souza, do Peruche, conta que teve de passar por momentos de apreensão na infância.

“Evitavam levar crianças nos ensaios justamente com receio desses enfrentamentos entre componentes e polícia. A gente ia a ensaios à tarde, mas tinha um distanciamento com as crianças. Quando a gente dizia que queria ir à escola diziam ‘sozinho você não vai’. “Mas porquê?’ ‘Porque tem muita briga e polícia’. Foi dessa forma que a gente acompanhou quando criança”, recorda.

Em 1972, a escola escolheu o enredo Chamada aos Heróis da Independência, de autoria de Geraldo Filme, e teve que passar pelo crivo da censura.

“O seu Carlão era presidente na época, fizemos o enredo que foi um sucesso na avenida no carnaval, e os dois foram convidados – entre aspas – a comparecerem ao Dops [Departamento de Ordem Política e Social] para explicarem o enredo que eles achavam subversivo e que o Peruche estava incitando o povo a se rebelar contra o regime. Ficaram uns dias lá respondendo perguntas. Não falaram que estavam presos, mas para averiguações”, relata o compositor.

Geraldo Filme continua: “Os compositores foram reprimidos e tiveram que ficar um tempo afastados do Unidos do Peruche porque não podiam mais fazer samba, não podiam escrever”.

CONTRA CRIANÇAS, MULHERES, IDOSOS

Simone Tobias, neta de Inocêncio Tobias, um dos fundadores da Camisa Verde e Branco, e filha de Carlos Alberto Tobias, que foi presidente da escola, lembra o que passou.

“Eu era criança, mas lembro de pararem ensaio, furarem instrumentos e nem tinha um volume grande de gente como hoje tem. Para eles, independia se tinha criança, mulher, idoso, eles chegavam com truculência e desciam pauladas. Era uma época muito tensa. Tenho na memória as cenas”, relata à Agência Brasil.

“A gente tinha que fazer o desenvolvimento do tema, do enredo, das alegorias, e aí era submetido a um auditor fiscal. Se eles achassem que tinham alguma coisa que não estava a contento, que não fosse a favor do governo e fosse algum protesto, não podia e tinha que mudar”, rememora.

REBELDIA NA AVENIDA

Simone explica que, embora em 1982 a perseguição aos temas da escola tenha começado a ficar menos intensa, os compositores ainda precisaram fazer mudanças na letra do enredo daquele ano, Negros Maravilhosos, Mutuo Mundo Kitoko. As alterações, no entanto, não foram seguidas na avenida, e os componentes cantaram o samba original.

“Óbvio que nós não ganhamos o carnaval. Meu pai acabou tomando uns petelecos. Acho que foi a primeira grande guinada para que a gente pudesse expressar realmente. Não era só o Camisa, eram todas as escolas. A gente não podia falar de temas que eles achassem polêmicos”, considera Simone.

Ela adverte: “Foi um período bem difícil. Para quem viveu aquilo à flor da pele e quando se fala ‘temos que voltar com a ditadura’, chega a arrepiar a alma. As pessoas realmente não têm noção do que uma ditadura é capaz de fazer”.

Simone destaca que a Nenê da Vila Matilde também foi uma escola de samba de resistência durante o regime militar.

CONTRAPONTO À DITADURA NO IMPÉRIO SERRANO

No Rio de Janeiro, em plena vigência do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o Império Serrano escolheu um tema que se contrapunha à ditadura.

Em 1969, desfilou com o enredo Heróis da Liberdade, composto por Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira, que defendia a liberdade por meio de manifestações populares.

Por isso, teve que se explicar aos agentes da censura, e os compositores tiveram que alterar a letra do samba.

“Houve, sim, repressão aos compositores do Império Serrano. Eles sofreram perseguição e proibições do regime muito mais por uma atitude focada nesta resistência individualizada do que um processo mais organizado de repressão à escola como um todo”, pontua à Agência Brasil o jornalista e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Chico Otávio.

CHICO BUARQUE NA CANARINHOS, DE NITERÓI

O professor de história Leandro Silveira, mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), observa que, antes de ser enredo do campeonato da Mangueira em 1998, o cantor e compositor Chico Buarque tinha sido escolhido para tema da escola Canarinhos da Engenhoca, de Niterói, na região metropolitana do Rio.

A presença do homenageado causou confusão com a presença da polícia. Hoje a escola não existe mais.

“Ele [Chico Buarque] veio, e a polícia foi atrás. Foi uma coisa bem tensa”, revela Silveira, um dos autores do livro Antigamente É que Era Bom: a Folia Niteroiense entre 1900-1986.

O professor sublinha que, durante o regime militar, as escolas de Niterói precisavam negociar com os agentes até os locais de ensaio.

“Escola de samba ensaiar nos grandes clubes aqui em Niterói, só se tivesse alguém que fizesse uma ponte com o censor. Elas conseguiam driblar um pouco a censura nos bairros, porque a censura não costumava entrar na favela para reprimir”, afirma.

MATERIAL DOS DESFILES

Outra repressão lembrada por Leandro Silveira nas escolas das duas cidades tinha como alvo o material de desfiles.

“Muitos croquis e desenhos de fantasias eram literalmente proibidos, censurados e tinham que fazer de novo. O que eu vejo tanto para Niterói, quanto para o Rio, é que as escolas quando foram reprimidas tiveram que desfocar as temáticas. Tem um período em que a repressão foi maior de 69 a 76 e os enredos não versam muito sobre nada progressista”, aponta o historiador, acrescentando que “o Império Serrano nunca perdeu a marca da resistência”.

OS SERTÕES

Além do Império Serrano, Silveira cita que a escola de samba Em Cima da Hora montou em 1976 o enredo Os Sertões, composto por Edeor de Paula.

Inspirado no clássico do escritor Euclides da Cunha, o samba destacou as dificuldades enfrentadas pelo povo no Nordeste: “O Homem revoltado com a sorte/ do mundo em que vivia/ Ocultou-se no sertão espalhando a rebeldia/ Se revoltando contra a lei/ Que a sociedade oferecia.”

“São dois momentos em que a temática é mais progressista, as escolhas conseguem furar um pouco essa bolha, porque no Rio e em Niterói tem muito enredo falando de ufanismo, de Brasil, do futuro ou de folclore”, disse Silveira, destacando que as agremiações só retomaram os enredos mais progressistas depois da abertura do regime no governo do general João Figueiredo.

“Gradativamente vai aparecer a crítica social e aí vai ter a Caprichosos de Pilares e Cabuçu, no Rio, e, em Niterói, a Souza Soares, do bairro de Santa Rosa. A escola União da Ilha da Conceição, já extinta hoje, na virada da abertura ganhou um Carnaval com um enredo sobre favela e critica tudo, inclusive a censura. Aí já em 85”, resgata o historiador.

“As escolas eram vigiadas. Quem tinha mais garrafas para vender [em Niterói] eram Cubango e Viradouro porque de certa forma tinham um trânsito maior com essa estrutura de poder”, avalia.

[Esta matéria é um trecho de uma reportagem (ver na íntegra aqui) em uma série especial da Agência Brasil sobre os 60 anos do golpe de 1964, que implantou uma ditadura que vigorou até 1985. Para acompanhar a série, que aborda o impacto da repressão em diversas áreas da vida nacional, clique aqui].


Imagem em destaque: desfile “Heróis da Liberdade”, Império Serrano, 1969. Foto: acervo Império Serrano/ divulgação Agência Brasil




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