Há 60 anos, Jango fazia seu histórico comício na Central do Brasil

Ato foi tentativa de mobilização popular em favor das reformas de base, que enfrentavam problemas estruturais e crônicos do país; processo foi interrompido com o golpe semanas depois. Confira vídeos


Por Gilberto Costa, repórter da Agência Brasil | De Brasília (DF)

Março de 1964. Sexta-feira, 13.

Em cima do mesmo palanque que Getúlio Vargas usava para falar com a população em atos públicos, João Belchior Marques Goulart, o presidente da República João Goulart, ou apenas Jango, está diante de 200 mil pessoas reunidas na Praça da República – como registraram os jornais do dia seguinte – em frente à Estação Pedro II da malha ferroviária da cidade do Rio de Janeiro, a Central do Brasil.

Às 20h46, Jango inicia seu discurso, sem texto escrito, no Comício da Central.

Dirigia-se “a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão ao Brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar sol a sol para a grandeza deste país.”

Em sua fala, o presidente tratou das reformas de base, em especial da reforma agrária; da diminuição dos valores dos alugueis; do decreto permitindo a desapropriação de terras para reforma agrária na faixa de dez quilômetros às margens de rodovias, ferrovias, açudes e barragens assinado; e do decreto transferindo para a União o controle das refinarias de petróleo de Ipiranga (RS) e Capuava (SP).

“A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reivindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo”, declarou.

O comício foi organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).

A CGT, junto com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Frente de Mobilização Popular (FMP) – formada por diferentes entidades sindicais e de representação de categorias, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as correntes mais à esquerda do PTB -, apoiava e pressionava João Goulart para adotar uma agenda de mudanças sociais, em momento de forte oposição no Congresso Nacional e de dificuldade de articulação política, inclusive com aliados e ex-apoiadores.

Naquela noite, há 60 anos, o presidente estava tenso. Durante o discurso de 65 minutos de duração, enxugou o rosto 35 vezes.

De acordo com o seu biógrafo, o historiador Jorge Ferreira, “o ambiente político era de radicalização” e havia ameaças de atentado. “Cartas anônimas garantiam que tiros seriam disparados do prédio da Central do Brasil ou que bombas explodiriam o palanque”, descreve em livro sobre João Goulart.

Lembrando das orientações médicas, a então primeira-dama Maria Thereza Goulart aconselhou ao marido não participar do comício. Não o convenceu, e decidiu, contra a vontade do presidente, acompanhá-lo.

“Eu não poderia faltar”, afirma a ex-primeira-dama no livro de Ferreira. “Tinha que estar no palanque para ver o que aconteceria. Mas eu estava muito assustada. Primeiro, minha fobia de multidão, e ali havia muita gente. Depois, ameaças de tiros e bombas. Por fim, medo de que Jango passasse mal. Para mim foi muito difícil, mas eu tinha de estar do lado dele.”

Dona Maria Thereza “estava certa de que aconteceria um atentado” após o discurso do presidente.

“Ela sempre foi uma mulher muito corajosa. Enfrentar o exílio não é uma coisa muito fácil com duas crianças. E ainda mais um exílio prolongado, que no começo a gente pensava que seria uma das tantas quarteladas que o Brasil já tinha tido até aquele momento”, recorda-se em entrevista à Agência Brasil João Vicente Goulart, à época com 6 anos, filho mais velho de Maria Thereza e Jango.

PROTAGONISMO DE MARIA THEREZA

As fotos de Maria Thereza, “com aquele coque bonito”, ao lado de Jango no comício da Central do Brasil fazem parte da memória familiar da socióloga Bárbara Goulart, neta do antigo casal presidencial e sobrinha de João Vicente.

Para ela, a presença da avó no ato político demonstra a importância que teve em um momento que eram raras as mulheres no cenário político ou em cargos públicos.

“Eu acho que quando a gente fala sobre o governo João Goulart, às vezes a gente tende a não tratar das figuras femininas”, assinala a socióloga que é autora do livro “O passado em disputa: memórias políticas sobre João Goulart.”

PROTEÇÃO A JANGO

Mesmo sob a ameaça de disparo de tiro, Maria Thereza ficou do lado direito de Jango.

Do outro lado foi escalado como escudo humano o corpulento Oswaldo Pacheco, ex-presidente do Sindicato dos Estivadores de Santos (SP), ex-deputado constituinte comunista em 1946, que teve mandato cassado em 1948 – quando o PCB foi posto na ilegalidade.

A segurança ostensiva do presidente da República foi feita pelo Exército.

A Central do Brasil está a 133 metros de distância do Palácio Duque de Caxias, onde funciona o Quartel-General do Comando Militar do Leste, antigo prédio do Ministério da Guerra.

AS REFORMAS DE BASE

O clima era nervoso mesmo para o discurso legalista, pacífico e sem extremismo de Jango em favor das chamadas “reformas de base”.

Essa era bandeira política que João Goulart abraçara como programa de governo desde quando teve reestabelecidos seus poderes de presidente da República em regime presidencialista, após o referendo de janeiro de 1963, que extinguiu o parlamentarismo instituído em setembro de 1961.

“O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos”, disse o presidente durante seu discurso.

Como registra o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, o CPDOC da Fundação Getúlia Vargas (FGV), as reformas de base incluíam propostas encaminhadas ao Legislativo e defendidas durante 1963 e 1964. Eram elas:

– a reforma agrária, consagrando o direito de propriedade, mas com uso condicionado ao bem-estar social;

– a reforma administrativa;

– a reforma universitária, para ampliar as garantias de liberdade docente e abolir o sistema de cátedra;

– a reforma bancária, para a implantação de um órgão centralizado e autônomo para a direção da política monetária (ainda não existia o Banco Central);

– a reforma eleitoral contra o então impedimento do voto dos analfabetos, praças e sargentos;

– e a reforma fiscal para eliminar o déficit do Tesouro, modernizando tributos e combatendo a sonegação de impostos.

As reformas agrária, universitária e eleitoral exigiam modificações na Constituição de 1946 a serem votadas pelo Congresso Nacional, onde o partido do presidente (PTB) tinha menos de 30% dos deputados, e estava sofrendo defecções.

Três dias antes do comício, o principal aliado (PSD) anunciará ruptura com o governo, agravando a necessidade de sustentação parlamentar.

APOIO POPULAR

O Comício da Central seria o primeiro ato público de Jango para demonstrar ao Congresso o apoio popular às reformas de base.

Os comícios seguintes seriam em Belo Horizonte (21 de abril, Dia de Tiradentes) e em São Paulo (1º de maio, Dia do Trabalhador), lembra Marcus Dezemone, professor do Instituto de História e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Para o acadêmico, apesar das dificuldades políticas e do “discurso das reformas de base atingir interesses consolidados”, o Comício da Central do Brasil não foi responsável por levar o país ao golpe militar.

Naquele instante histórico, o rompimento da ordem institucional “não era uma coisa inescapável”.

Poderia acontecer, mas era “uma possibilidade ainda em aberto.” Os sinais de ruptura se intensificaram em eventos seguintes.

O historiador assinala que havia antes do comício da Central do Brasil movimentos que desejavam a derrubada de João Goulart e outros que atuavam só para o seu enfraquecimento, tendo em perspectiva as próximas eleições (1965), quando desejavam que eventual candidato apoiado por Jango ficasse em desvantagem.

Não havia reeleição para cargos do Poder Executivo na época, o presidente não poderia concorrer.

Os nomes mais prováveis eram do ex-presidente Juscelino Kubistchek (PSD), Carlos Lacerda (UDN) e Leonel Brizola (PTB).

Mas apesar desses movimentos e do comício na Central do Brasil, os militares ainda se dividiam quanto à deposição de João Goulart e eventual intervenção militar – como desejava Lacerda, defendendo “uso legítimo das forças armadas.”

Vinte e dois dias depois do comício da Central do Brasil, João Goulart, Maria Thereza Goulart e os filhos João Vicente e Denise desembarcaram no Uruguai em busca de asilo político.

Nove anos depois, a família se muda para a Argentina. Jango morre em 6 de dezembro de 1976, quase três anos antes da Lei da Anistia no Brasil.

O presidente constitucional, que sucedeu Jânio Quadros (UDN) após a renúncia, viveu seus últimos 12 anos no exílio sem poder voltar ao seu país.


Imagem em destaque: Jango e Maria Thereza, no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Foto: acervo Lemad/USP




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