Pesquisa desvenda a amplitude natural e social do bioma, e como este também sofre com devastação, como a Amazônia, mas costuma merecer menos atenção da opinião pública.
Por Patrícia Lauretti, da Unicamp | De Campinas (SP)
Olhamos para uma paisagem de serra, coberta de verde e água. Dá para imaginar o barulho da corredeira, os animais em volta; o céu que, neste dia, se prepara para as chuvas. Aqui é Ceará, Parque Nacional de Ubajara, região da Caatinga brasileira. A foto mostra um dos chamados “brejos de altitude”, ilhas de vegetação úmida que abrigam nascentes e servem de refúgio aos animais silvestres nos períodos de seca.
Nem toda a Caatinga é assim, é verdade, mas assim também é a Caatinga.
A difícil associação é porque estamos acostumados a pensar na Caatinga apenas como o poético sertão, semiárido brasileiro, onde prevalecem a seca e os problemas sociais.
Essa narrativa tem implicações discutidas pela bióloga Amanda Sousa Silvino em sua tese de doutorado, defendida no programa de Ambiente e Sociedade, ligado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
A tese “A Conservação da Caatinga entre arenas políticas do semiárido brasileiro” foi financiada pela Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, instituição pública) e desenvolvida sob orientação da professora Lúcia da Costa Ferreira.
Segundo Amanda, a imagem da Caatinga como uma região inóspita é propagada por diversos atores sociais.
Isso legitima ações com foco na conservação do solo e dos recursos hídricos, que privilegiam os aspectos sociais relacionados à seca e direcionados ao “semiárido”, mas sem reconhecer as riquezas e potenciais da região, essa é uma das implicações estudadas na tese.
“Fui percebendo que o termo semiárido é como um grande guarda-chuva que sombreia toda a região. Quando vou falar sobre nordeste, sobre a Caatinga, tenho o semiárido como um direcionador do raciocínio. Remete aos discursos sobre a seca, a desertificação, a escassez hídrica, em como as comunidades podem viver melhor frente a seca. Quando a seca acaba e a chuva vem é como se esse semiárido deixasse de existir”, explica a autora.
A narrativa da seca perderia aí o seu sentido.
“Não se fala muito que existem chuvas intensas e torrenciais, que existe um período que a Caatinga fica verde e que nesse momento, os animais, a flora e a fauna estão num momento de reprodução intenso e que as comunidades plantam e tem a sua produção animal e vegetal”, complementa.
A pesquisadora trabalha com o conceito de “arenas políticas”, espaços sociais onde os atores disputam seus interesses.
Amanda constatou que uma das arenas políticas mais antigas e historicamente consolidadas seria a vinculada à narrativa da seca, mais preocupada com as questões sociais envolvidas e menos com a questão ambiental.
“Minha tese foi tentar entender como a questão da conservação começou a ser reivindicada para esse ambiente historicamente visto mais através das lentes da seca, que movimenta toda uma estrutura política. Entender além desse viés de que a Caatinga tem um ‘mal’ que precisa ser sanado com grandes obras ou soluções que tentam alterar ou trazer outras qualidades à região, diferentes de sua qualidade natural, que é a de passar por momentos de seca”.
A Caatinga é um dos seis biomas brasileiros ao lado da Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa.
Essa divisão administrativa em biomas foi feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2004, e gerou, na opinião da pesquisadora, demandas por políticas públicas específicas para cada bioma.
A pesquisadora da Unicamp afirma que no começo as políticas se concentraram nos biomas Amazônia e Mata Atlântica. Porém, a comunidade científica, associada aos outros biomas, começou a reivindicar ações voltadas aos biomas em que atuavam.
Foi quando redes de conservação da Caatinga começaram a se formar, constituindo esta outra arena política, mais recente, propondo outra estratégia de conservação que se ocupa da preservação das espécies e da diversidade biológica.
O movimento pela biodiversidade atua no âmbito do bioma Caatinga e não a partir do conceito de semiárido. “Nesse caso, os ambientalistas querem mostrar o lado da Caatinga úmida com a preocupação de tratar de políticas de conservação da biodiversidade e da preservação das espécies”.
É um movimento ainda pouco articulado, na avaliação da autora.
“Inclusive no âmbito internacional. Quando você tem, por exemplo, a construção de uma hidrelétrica na Amazônia gerando impactos ambientais sérios para um rio com comunidade indígena, o assunto rapidamente é notícia internacional. Mas uma obra milionária como a transposição do rio São Francisco, que também vai trazer impactos, e para o único rio perene de uma região inteira, isso não repercute fora do país da mesma forma”.
A tensão gerada no encontro das duas arenas, ou espaços políticos, foi estudada na tese. “Minha pesquisa discute como em diferentes níveis de atuação social os atores se organizam, falam sobre a Caatinga e reivindicam a conservação do ambiente”.
Amanda acredita que a Caatinga precisa de um significado mais amplo do que aquele olhar que a enxerga apenas como uma região semiárida.
Constituída de áreas bastante povoadas, a Caatinga é muito rica também do ponto de vista social.
“Muitas comunidades usam intensamente os recursos naturais, como a lenha, para energia, e o pasto aberto, para criação de animais. São comunidades perto umas das outras e já bem consolidadas”.
É uma situação que, de novo, difere da região amazônica.
“Na Amazônia, há uma fronteira agrícola sendo aberta com grandes queimadas e desmatamentos. O desmatamento na Caatinga é pulverizado e ocorre quando as comunidades vão abrindo as matas, como se fosse um desmatamento de dentro para fora”.
No percurso do trabalho, a pesquisadora participou de diversos eventos que discutiram os rumos das políticas voltadas à região, com o objetivo de observar as narrativas das pessoas e numa tentativa de mapear os grupos envolvidos com a conservação do ambiente. Além disso ela realizou entrevistas.
“Os ambientalistas e cientistas defendem a diversidade da Caatinga e a criação de mais unidades de conservação. Fui entender como se fala da Caatinga nos espaços que não são só dos conservacionistas, onde se debate a convivência com o semiárido”, pontua.
Segundo Amanda, vários ambientalistas estão hoje mobilizados nessa perspectiva de pensar o lugar junto ao fenômeno climático das secas.
Amanda considera que o desenvolvimento da Caatinga precisa levar em conta as especificidades de cada lugar.
“A pesquisa tentou trazer um olhar mais político e sociológico para a Caatinga. A conservação da natureza é uma decisão política e um processo social complexo, é um embate político que envolve múltiplas camadas sociais, de forma local, regional, nacional e internacional. O mais importante é entender a conservação como uma disputa social extremamente complexa”.
Imagem em destaque: Caatinga verde: uma cachoeira do Parque Nacional de Ubajara (CE). Fotos: Amanda Silvino
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