A carreata de seu Salumão. Por G.O.Aragão

À chegada do jipe, uma dúvida dos integrantes da comitiva é de pronto resolvida por aquele aventureiro


“A CARREATA DE SEU SALUMÃO¹”
Por Geraldo Oliveira Aragão | Do Rio de Janeiro (RJ)

É uma deferência lustrosa eleger alguém pra chamar de “seu”, por isso todos os personagens aqui terão este tratamento “deferenciado”.

Nada tocou tão profundamente a minha infância do que uma campanha eleitoral no meu sertão; vê uma ruma de gente mais bem vestida e mais bonita que a gente é muito encantador.

Apois, seu Salumão carregava uma penca de gente assim com ele, que também não fazia por menos; sempre entonado com umas roupas brancas de linho e botas vermelhas.

Aliás, não sei de onde diabo saiu essa gente que só tem nome de pessoas da bíblia, acho que só pode ser inveja de padim Ciço que já nasceu santo.

Seu Salumão sempre apoiou candidatos amigos mas naquele pleito resolveu se lançar à sorte, afinal já se tornara conhecido e respeitado por todos.

Naquele tempo o interior tinha mais eleitores do que na cidade, e por isso mesmo seu Salumão começou a planejar o seu roteiro na busca daqueles tesouros ariscos chamados de matutos; encarregou seu Zé caboré, que era um agregado informal da sua fazenda, para entregar aos moradores ao longo do percurso, bilhetes orientando que dessem uma roçada nas margens das estradas, para ele passar com sua carreata sem estragar a pintura do seu bem cuidado jipe.

Era um atraso medonho, as estradas não tinham asfalto e nem a cidade assalto, era só piçarra, poeira e lama; com a chuva a piçarra se afrouxava e produzia barrocas de lama, provocando atoleiro até mesmo em veículo de tração nas quatro rodas, e foi esta a má sorte de seu Salumão.

Nos dias que antecederam a grande carreata os porcos da fazenda lameirão resolveram se ‘banhar’ naquelas atraentes barrocas vermelhas (como as botas do candidato).

O ajuntamento dos potenciais eleitores era na casa do seu Nouzinho, que tinha vocação para adular gente rica.

Era um domingo de manhã ensolarada e seu Nouzinho tratou logo de armar redes por todo o telheiro da casa, para receber a carreata; as comunicações eram tão precárias quanto as estradas, o que deixou o anfitrião desapontado, sem saber o que de fato ocorrera pelo caminho, por se aproximar a hora do almoço e nada do candidato chegar. Para a sorte de todos um cassaco* forasteiro  que se arranchara na vizinhança, e sentiu um cheirinho de cachaça, se ofereceu para  ler folhetos, o que foi aceito de imediato. Foi um encanto.

Mesmo antes do cassaco esgotar seu repertório, eis que irrompe a sonora carreata:

– O chofrer², seu Levy, ornamentado  com um belo par de luvas de couro de veado, primorosamente curtido no aloque³ de seu Machado e  delicadamente costuradas pelo mais famoso artesão do couro da localidade(mestre Joca).

-Seu Cardoso, assessor do candidato a prefeito, com as mãos enlameadas pelo empenho em desatolar o carro.

-Seu Salumão, para não perder a harmonia cromática, exibia seu par de botas também encarnada, só que desta feita vestindo calça curinga para dar um ar jovial e conquistar os votos da juventude.

Pelo “designer” do jipe o chofrer chegou primeiro, se antecipou a justificar o atraso: – seu Nouzinho, os porco de seu Gaspar do lameirão estragou a estrada e o jipe se atolou; nisso  o assessor, para provar a justeza intelectual da sua função, tratou de corrigir o chofrer – não é se atolou não Levy, é atolou-se; aí registrou-se um pequeno hiato no diálogo e o candidato aproximou-se para dirimir as dúvidas de uma vez por todas, já que como futuro prefeito não podia ficar por baixo e saiu-se com esta: espera aí, o jipe não ficou atolado não foi com as quatro rodas? Os dois responderam, de chofre: sim – então é se atolou-se! Sentenciou.

G. O. Aragão – dezembro de 2020.
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¹- Pronúncia matuta de salomão;
²- Corruptela matuta de motorista em francês – chauffeur.
³- local onde se curte o couro (curtume)
* – trabalhador de pedreira e/ou construção de estradas.


Imagem em destaque: Transamazônica nos anos 1970, um dos símbolos de atoleiro. Reprodução de quadro de vídeo da Agência Nacional


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