Um conto sobre feminicídio. Por Nicole Zadorestki Caroti

“O dia em que morri na cidade escura”. “Desde os primeiros minutos daquela manhã algo estava diferente (…) À noite, o terror na volta para casa”. Terá chegado?


O dia em que morri na cidade escura
Por Nicole Zadorestki Caroti | De São Vicente (SP)
Desde os primeiros minutos daquela manhã algo estava diferente. Em busca de tempo,  ânsia pela vida, e  afeto, uma jovem volta para a casa à noite quando se depara com a cidade completamente sombria, sem energia elétrica. Dado que procura um facho de luz, é perseguida por um estuprador.

 

Naquele dia os compromissos se perduraram por muito mais tempo. Lembro que, inevitavelmente, chorei por causa da pressão das eventualidades. Derramei as lágrimas na frente de amigas, inclusive. Dissera aos prantos que mal tivera piscado e a vida já havia passado. As lágrimas salpicaram meus olhos e desceram em direção ao pescoço.

Eu sentia que meu tempo neste mundo estava correndo mais do que a força da gravidade, que  empurrava o chororô sempre para baixo. Mal pisquei e passara um ano. Um medo inexorável dominara. Eu não queria ir embora deste planeta sem ter feito algo maior do que o “eu”.  O gosto salgado na boca era então, acima de tudo, de ânsia pela vida.

De atraso em atraso, cheguei em “casa” bastante tarde. Contudo, o problema é que nesta época, não sei por que, não morava ali. Aquela casa era um abrigo dos trancos da minha rotina.

O imóvel de uma amiga  servia de repouso para meus olhos cansados, quando assim eles necessitassem de uma inação. Mas, aquela era uma noite de sexta-feira, e na minha casa, minha avó me esperava para dormir. O dia não havia sido bom, conforme lhe contei mais cedo, e eu estimava demais por alguém que fosse benevolente e me abraçasse com carinho.

Por isso, neste momento, arrumo as roupas na mochila e parto em uma jornada com a finalidade de encontrar um ônibus. Para minha infelicidade estava longe demais, portanto teria que pegar vários veículos.

Sabe, aquele dia havia sido completamente cinza – dominado por uma névoa estranha. Nada fazia muito sentido, nem o sol saiu, muito menos a chuva apareceu. E, eu só fui entender tudo isso a partir de agora.

Após sair da rua do condomínio, passo por um supermercado vegano. Compro diversos produtos e os coloco na sacola, porém o óleo – apenas ele – só seria transportado de uma maneira: através de um copo de vidro. Se assim era, então fosse. Com os ombros cheios e um copo nas mãos, vejo a cidade se escurecer diante dos meus olhos.

De repente, não havia energia elétrica em todos os quarteirões. O breu era tanto que eu não estava sendo capaz de enxergar meus próprios passos. Não era possível ver nada além das possibilidades e memórias dentro de mim. As imagens seriam criadas após eu as tocar, como quem tateia a morte. Meus pés buscavam uma luz, qualquer que fosse. Diante do terror no estômago, como quem engole o próprio ácido digestivo, passo pelo ponto em que deveria esperar o ônibus.

A cidade estava vazia e escura –  inabitável. Corro para qualquer facho de luz, mas é ineficaz. Até que, em certo trecho, minha alma esbarra com a de um ciclista. Consigo ver de relance o rosto do homem, na faixa dos 40 anos. Achei que ele, assim como eu, iria comentar sobre a escuridão.

Mas não. Seus olhos exalam outro tipo de diálogo… e por isso, me pus a correr desesperadamente. Enquanto o óleo cai no chão, começo a pensar nas possibilidades desta combate mortal. Caso a escuridão fosse permanecer durante toda a eternidade, teria eu que, quebrar o copo e aplicar um golpe em sua jugular. Esta, sendo a mais difícil das possibilidades, já que o marmanjo tem o triplo do meu peso. Contudo, confesso a ti: até que falte ar dos meus pulmões, não irei desistir. A outra chance – que eu torcia – seria encontrar ajuda.

Nesta altura meus passos falham e, ao mesmo tempo, ele pedala com força em minha direção. Diante da inevitável cena de estupro  em plena avenida escura de uma cidade abandonada, grito por socorro. Ninguém me ouve além de mim, que respinga suor por todas calçadas onde meus pés pisam.

Numa esquina, por sorte, encontro um bar com as luzes acesas. Teria eu chegado a outro bairro em que a escuridão não existisse? De maneira esbaforida, berro para mulheres e homens que jantam e bebericam cervejas.

“Ajude-me! Há um homem me perseguindo! O senhor tem uma minuto? Preciso de ajuda!”

As pessoas me ignoram, apenas. Alguns homens, então, se reúnem e apontam pra mim. Eles me julgam como uma moradora de rua – embora eu esteja bem vestida – vulgar e inconveniente. Ouço os cochichos. Os ouço sim, mas ele não me escutam.

O ciclista se encolhe na parede antes do bar e me olha fixamente. Ele aguarda o desfecho final da história. Se eu encontrar alguém que possa me ajudar, sem dúvidas irei denunciá-lo. No entanto, caso ninguém me ajude, serei uma vítima disponível. E temo em dizer, mas sinto meu fim próximo!

Foi então que vejo um homem alto, de barba rala, vestindo confortavelmente uma camisa cinza. Digo a ele que preciso de ajuda. Conto a história rapidamente e aponto para o ciclista, que olha por cima da cabeça para nós. Ele concorda, com afeto.

Vejo os outros moradores dessa cidade fantasma reunidos. Eles me indicam durante o diálogo horrendo, repleto de julgamentos.

Agora, sobre este homem… quando volto meu olhar para o seu, não o vejo mais lá. Ao contrário, suas pupilas indicam o mesmo ódio do ciclista. Percebo naquele momento que, diferente do outro, não tenho mais tempo para correr. Sou fisgada pelo feminicídio numa avenida movimentada. Lastimo por saber que jamais verão meu rosto desfigurado. Não haverá, em hipótese alguma, novas lágrimas para chorar. Espero que encontrem meu corpo. Clamo por justiça antes da luz apagar completamente dentro de mim.

09/10/2020.


Imagem em destaque (e demais): uma cidade, entretanto entre tantas. Por @waasantista


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