Reforma administrativa ou nova Constituição? Por Maria Marta

O que se está propondo e discutindo de “reforma” vai totalmente de encontro ao que preconiza a Carta Magna, quanto ao papel do Estado de provedor de serviços e direitos


Reforma administrativa ou nova Constituição?
Por Maria Marta Renner Weber Lunardon* | De Curitiba (PR)

“Escrevo, relato minha indignação, meu medo, meu protesto, porque essa é a minha
luta” (Ignácio de Loyola Brandão)

Cada vez que escuto, nos diversos canais de comunicação “tem que reduzir o gasto público!!!” sinto uma indignação profunda.

Pergunto: como reduzir gasto público? Como é possível tal ambiguidade se no mesmo noticiário, segundos depois, o mesmo acontecendo nas redes sociais, nas palestras, no youtube e toda a parafernália tecnológica, a fala é uníssona ao cobrar do Estado políticas públicas e, por consequência, a presença do Estado para solucionar, custear, gerir, interferir nos mais diversos problemas que afligem nossa nação?

Tudo isso custa e custa muito, especialmente em se tratando das “despesas primárias”,” despesas de pessoal”, permanentes e crescentes….

Em que medida podemos reduzir a atuação do Estado se ele é cada vez mais requisitado?

Há mazelas enormes, por exemplo aquela que se descortinou no momento da implementação do auxílio emergencial, quando descobrimos que há entre nós dezenas de milhões de pessoas “invisíveis”. Quando nos falta água tratada e saneamento básico, quando descobrimos que não seríamos capazes de produzir os nossos próprios EPIs diante da pandemia que nos alastrou de forma contundente sem coordenação, sem organização, sem exemplos e sem bom senso. Em termos de suprimento de necessidades básicas, um país continental como o nosso emparelha com a África ou com a Índia…

A chamada “sociedade civil” tem condições de se organizar? Estamos prontos e aptos?

Porque se a ideia é de um Estado mínimo, assim mais ou menos, meio omisso, meio cá meio lá, que se reforme totalmente a nossa Constituição, que seja reescrita, uma vez que reforma é remendo e não vai dar certo, mais uma vez…

O Estado brasileiro sempre foi O PROVEDOR, mas, vejamos: a Constituição de 1988 teve natureza responsiva a todos acontecimentos anteriores, registrados pela história; desta maneira, criou um Estado poderoso e protetivo, podendo ser chamado de Estado de bem estar social, de apoio a todas as necessidades dos cidadãos, seus direitos sociais, liberdades, direitos e garantias individuais, entre tantas outras funções, seja na execução direta, seja na regulação, na intervenção ou na fiscalização.

Atribuiu ao poder público, em seus diversos níveis, responsabilidades de caráter amplo e universal, exemplificando, o acesso à saúde, à educação e à segurança, meio ambiente, cuidados com as crianças e adolescentes… Além disto, a competência não só legislativa, mas também, e de forma mais relevante, os serviços públicos ligados mais diretamente à sociedade foram designados aos Estados e Municípios. Cito os acima enumerados, onde a mão estatal está presente quase que sem nenhuma possibilidade de delegação.

Também com o anseio de evitar novas investidas ao Estado democrático de Direito que se pretendia fosse duradouro, foram outorgadas autonomias tanto ao Poder Judiciário (e toda sua estrutura), o mesmo acontecendo com os Ministérios Públicos, Poder Legislativo, Tribunais de Contas…

Coroando esta autonomia, no que tange às normas gerais de finanças públicas e orçamento, foi estabelecido que os recursos destinados a estes órgãos pela legislação orçamentária deveriam ser repassados, nestes casos, em duodécimos, até o dia 20 de cada mês, ou seja, uma despesa vinculada e independente da execução orçamentária propriamente dita, quando só se efetiva se houver ingresso de receitas no tesouro dos entes federados.

Nem mesmo o chamado “teto de gastos” instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, com o “novo regime fiscal” corrige essa inegável desigualdade, a uma porque não chega aos Estados pois vigora apenas para órgãos de âmbito federal, a duas porque se refere à orçamento, que, como se sabe é uma peça de “ficção”; estabelece suas respectivas rubricas e os gestores que o executam, em tese, deveriam observar se há dinheiro para as despesas antes do empenho e liquidação.

Diante deste quadro, é inegável que o Estado, de uma maneira geral, ficou gigante, e, por razões de ordem constitucional bem como outras com menos envergadura e legitimidade, foram se instalando e se multiplicando órgãos públicos, empresas etc.

Ao longo dessas mais de três décadas, visualizada a necessidade de melhorar a administração dos serviços públicos, a Carta Constitucional foi emendada, proporcionando, entre outras modernizações, a possibilidade do estabelecimento de metas entre órgãos da administração direta e suas autarquias, a fixação de critérios objetivos para alcance de melhorias na remuneração dos servidores públicos, a criação de escolas de governo.

No mínimo, e pelo menos a partir de 2003 a chamada Administração Pública, que entre os constitucionalistas e administrativistas era grafada com letra maiúscula, teve sua marca modificada para “gestão pública”, enfatizando-se a necessidade de eficiência, o foco no cidadão, a implantação de mecanismos de controle interno, a troca de experiências exitosas entre os Estados da Federação para modelos informatizados em compras, licitações, controle de frota, aquisição de combustíveis e despesas de viagem, apenas para mencionar algumas melhorias já implantadas, há muito.

Os órgãos do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, dentro de suas competências, fizeram o dever de casa, uns de forma mais abrangente, outros de forma mais tímida, a depender da visão dos Ministros, Governadores e Prefeitos em torno de terceirizações ou privatização. Mas é preciso ter atenção, a todo momento; houve questionamentos tanto dos Tribunais de Contas como do Ministério Público em torno da impossibilidade dessa transferência de prestação de serviços ao setor privado ou terceiro setor, diante das características atribuídas a diversas atividades, como sendo serviços públicos indelegáveis em sua natureza, por mandamento constitucional.

Mas nada – ou muito pouco – se sabe do que se passa na “gestão” do Poder Judiciário, do Legislativo, dos Tribunais de Contas e dos Ministérios Públicos (em suas diversas modalidades de atuação), pois apesar de o art. 169 da Carta Magna ser expresso ao demandar a fixação de normas sobre as despesas de pessoal, elas estão no patamar do Executivo e não adentram aos órgãos que detém autonomia administrativa e financeira total!

Portanto, qualquer reforma administrativa que se construa, voltará a mexer no óbvio, despesas de pessoal (eventual custeio, que não é tão relevante) do Poder Executivo, que como se sabe tem em suas folhas de pagamento um severo obstáculo de sobrevivência, seja para prestação dos referidos serviços públicos, seja para manutenção de seu equilíbrio, em termos da responsabilidade fiscal, seja para as sobras ao investimento. A reforma da previdência não salvou estas economias e nem será a solução a curto e médio prazo. Por todo este tempo, alguns administradores conseguiram se equilibrar para manter essa equação mais ou menos operativa, outros sucumbiram e até hoje amargam contas desequilibradas, déficits orçamentários e financeiros que passam de um mandato para outro, chegando a atrasar ou parcelar salários de servidores ativos e inativos.

Diante do que foi exposto aqui e é do conhecimento amplo de todos, votar-se-ia eventual reforma e as coisas voltariam ao “status quo ante” sem que se pudesse alcançar qualquer benefício alvissareiro. Isto porque as folhas continuarão a crescer pela necessidade de pessoal para as demandas sociais, isto sem falar no que será preciso entregar à população durante e pós pandemia, que se instalou mundialmente no ano de 2020, com a clara consciência de que nosso Brasil tem dimensões continentais e desigualdades que nos
orgulham mas, ao mesmo tempo, nos distanciam…

O discurso é sempre o mesmo: “melhorar a qualidade do gasto” e, deixando de lado os evidentes casos de corrupção e desvio (que felizmente e não obstante o alarde da mídia são a exceção e não a regra geral), o gasto pode até ser melhorado com uma gestão mais aparelhada, como se espera do SUS, ao exemplo, mas jamais será alcançada a redução significativa deste “gasto público”, sem que se mude a Constituição e se construa, então, se for vontade de todos, um novo modelo de Estado.

O que não se pode esperar é a superação desta controvérsia dentro do sistema constitucional vigente; ou seja, atribuição de um sem número de tarefas ao Estado sem a contrapartida necessária, ou, a existência de “mundos” distintos, a vida nos entes com autonomia podendo gerir livremente seus orçamentos (às vezes até prescindindo de leis formal e materialmente aprovadas pelo Legislativo) e o mundo dos entes do Poder Executivo, cercados de normatividade e controle, fiscalização, por todos os lados.

Quando fizemos outras reformas, todas elas muito boas, diga-se de passagem, a esperança era de modificação de mentalidade, em primeiro lugar, mas nenhuma delas foi (totalmente) implementada – na prática – pela maioria dos entes federados e, mesmo com estas medidas, ainda se fala de excessos do gasto público, nem sempre eficiente apesar de todos os instrumentos que formalmente constam das diretrizes constitucionais modificadas.

Assim sendo, qualquer reforma administrativa, que ainda não tem delimitados – precisamente – os seus termos ou como, ao fim e ao cabo, sairá do Congresso Nacional ( se é que será enviada ainda neste governo) está atrelada – em alguma medida – à reforma tributária, pois como as coisas se passam hoje, não é possível reduzir repasses ou a arrecadação dos entes federados e dos Municípios, sob pena de levá-los à quebra e, de forma mais grave, ao colapso na execução de serviços públicos básicos às pessoas.

Penso que nenhuma reforma administrativa parcial vai afastar de nós as agruras que, ao longo do tempo, as necessidades sociais foram impondo aos gestores públicos, isso tudo aliado à responsabilidade fiscal, às vezes relegada, mas que vige aterrorizando as autoridades fazendárias; em resumo, para mudar a quantidade e melhorar a qualidade de gastos públicos, seria necessário adotar um outro modelo estatal, o que está longe de ser o proposto por reformas parciais.

Resta, então, um questionamento maior: com este modelo constitucional é possível pensar em redução de gasto público? Não seria uma ilusão? Não seria melhor, se for o entendimento da maioria dos brasileiros, optar por outra matriz?

Bom, ainda, alertar para o fato de que a quebra de paradigma afastaria responsabilidades públicas com o universo grandioso da prestação dos serviços de educação, saúde, saneamento, meio ambiente e outros tantos, administrando, quem sabe, apenas as forças públicas. Um verdadeiro Estado Polícia…

É esse caminho que queremos trilhar?


* Maria Marta Renner Weber Lunardon, procuradora do Estado do Paraná aposentada, foi secretária de Estado da Administração e da Previdência do Paraná entre 2004-2010, quando, sob sua pasta, tramitaram procedimentos imprescindíveis a políticas públicas na ponta (educação, saúde, segurança, assistência social) implementadas naquele período. Integrou também o Consad (Conselho Nacional de Secretários de Estado da Administração). Um resumo desse trabalho pode ser conferido clicando aqui e aqui também.


Imagem em destaque: Samu em Recife, apenas um dentre incontáveis exemplos de serviços públicos essenciais que demandam gastos, inclusive com funcionalismo. Foto de Andrea Rego Barros/Fotos Públicas


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