Rotina da quarentena. No transporte público. Por Nicole Zadorestki Caroti

Muita gente não pode fazer home office. Ainda mais com a flexibilização em curso, o confinamento é outro: na lotação de ônibus, VLT, barcas, trens e metrô


Por ser uma usuária frequente da linha 900 já vivi um bocado
Por Nicole Zadorestki Caroti | De São Vicente (SP)

O descaso na conexão entre as partes da cidade sempre existiu – nós sabemos. Não é de hoje que os ônibus passam lotados pelas principais avenidas dos centros urbanos. Percepção que pode ser vista de qualquer ponto dos municípios do Brasil. A população, em si, nunca se agradou nessa comodidade falsa, isto é fato. Porém, neste momento de pandemia parece que a situação se tornou um  “pano na peneira” inconfundível – e lhe aviso, o tecido está bem puído.

Uso obrigatório de máscara e toners de álcool em gel é medida necessária, ainda assim paliativa. E onde estaria a ferida dessa solução? Ah, meu caro… bem distante – tão longínqua quanto um metrô que liga a área insular à continental.

Nesta crônica pretendo cuspir acontecimentos que minha pele absorveu dentro do  transporte público – em meio a muito álcool etílico e doses homeopáticas de stress. Ou melhor, prometo não segurar a tosse como uma dama. Quero escarrar a saliva no chão. Que nojeira, segure o lenço!

Estamos passamos por um processo de flexibilização no comércio. No entanto, é bom lembrarmos que os trabalhadores que exercem funções essenciais, como os prestadores de serviços em supermercados, farmácias, postos de gasolina, padarias, entre outros, não descansaram no tal do “home office”.

A opção do trabalho virtual ficou longe das possibilidades para esses cidadãos. Primeiro que, para muitos, essa alternativa nem foi oferecida no contrato empregatício. Segundo que, a ilusão de munícipes com acesso a computadores e internet passa longe da realidade brasileira. Alô, Gal Costa? Eu preciso te contar da piscina… da margarina…preciso te contar de mim. Baby, aqui só tem a margarina mesmo.

Honestidade é uma palavra forte, baby. E agora, mais do que nunca, precisamos dela para admitir e afirmar que trabalhar em casa é luxo. Isolamento é magnificência.

Desta maneira, aquele habitual sistema de superlotação dentro do transporte público continuou seguindo. E, por sua vez, não é nem falado sobre o assunto. É como uma realidade oculta e menos importante enfrentada por milhares de brasileiros. Uma vivência tão desprezada que o absurdo tornou-se normal, sem holofotes.

Para os usuários não há outra opção. Afinal, as contas sempre chegam ao final do mês. E para pagá-las a rotina do trabalho é necessária. Acontece que, boa parte dos operários mora do outro lado da cidade. E a locomoção se torna uma viagem exaustiva, que em média dura cerca de três horas.

Este cenário existe com ou sem pandemia. Logo passa a ser um assunto naturalizado, tal qual acordar e escovar os dentes. Simplesmente as pessoas enfrentam. O conhecimento sobre as linhas metropolitanas é passado de geração para geração num ensaio teatral místico. Contudo, o final da peça é trágico e faz todos atores se despedaçarem – ou sentirem o ar faltar-lhes da boca num leito de UTI.

E cadê todo mundo? As pessoas não reclamam?

É claro que, de certo modo, boa parte reivindica seus direitos. Todavia, oras, pense neste sistema de mobilidade urbana que oferece o transporte público não como uma integração essencial entre as zonas, e sim como uma solução abastada e atenuante de descaso público.

De acordo com uma pesquisa de opinião com os paulistanos publicada pela Rede São Paulo em 2017, os aspectos, áreas e serviços de locomoção no município de São Paulo obtiveram nota inferior a 5,5, em uma escala de zero a dez.

As reivindicações da população são copos de água engolidas rapidamente pela boca de um diabético. As gotas somem sem ao menos terem a chance de serem ouvidas.

Às vezes penso que se as campanhas publicitárias fossem honestas o bastante para esse desleixo, seus slogans poderiam ser: “se está reclamando compre um carro”. E quem não tem condições para comprar um carro, faz o quê?

Uma das opções, por exemplo,  é adquirir uma bicicleta. Ah, vale ressaltar que neste descaso público essa preferência também não é lá das melhores. Não obstante, o problema  está na falta de infraestrutura para os ciclistas. Em São Vicente, cidade onde resido, conheço pouquíssimas ciclovias – que ficam nas áreas mais privilegiadas do município. Algumas importantes avenidas, como é o caso da Antônio Emmerich, sequer possuem.

Voltando às minhas epifanias, ao sair de casa tenho optado por utilizar o VLT – Veículo Leve Sobre Trilhos. O transporte conta com 15 estações. São 11,5 quilômetros ligando o Terminal Barreiros, em São Vicente, à Estação Porto, em Santos. Por lá tenho ouvido e visto muitas histórias que me proporcionam refletir sobre valores, funções, classes e resistência.

Já presenciei momentos que poderiam suceder acidentes fatais envolvendo ciclistas. Certo dia, o VLT quase passou por cima de um. É claro que a pessoa estava errada. Afinal, a passagem entre os trilhos não é autorizada. Porém, ao espiar a ciclovia, foi notável a superlotação nos horários de pico. Gente amontoada, na chuva, esperando o sinal abrir para atravessar entre as vias perigosas. Sem contar que esta parcela precisa estar ciente da imprudência de terceiros – motociclistas, motoristas e pedestres – os quais não respeitam o sinal.

Por ser uma usuária frequente da linha 900, conheço cada pedinte filosófico da cidade. Existe um homem que até hoje não sei seu nome, mas ele toca meu coração de uma forma esquizofrênica. Tremo que nem vara verde toda vez que ele abre a boca, juro. Há dois anos ele contou sua história enquanto o ônibus tremelicava. Nas suas mãos produzia uma flor artesanal feita de folhas de palmeiras. O objeto custava dois reais. Na época eu não tinha essa quantia na carteira, então abri meu caderno e o entreguei uma folha onde havia uma poesia. Ele me prometeu a entregar para alguém que soubesse ler, pois o mesmo era analfabeto.

Há poucos dias, ele subiu no mesmo ônibus que eu. Contou a história para todos e acrescentou alguns episódios exclusivos – e tristes. O homem foi proibido de vender seu artesanato. Segundo ele, a Guarda Civil Municipal tomou todo o seu material, que provinha das palmeiras que encantam os olhos da classe média – e turistas – na orla de Santos.

Naquele dia, excepcionalmente, eu também não tinha dois reais. Mas, fiquei feliz por ele ter recebido tantas moedas e notas amassados dos trabalhadores que ali estavam. Engoli em seco. Mais uma vez, esse mundo nos dá um soco e toma tudo que temos, baby. Nos obriga a enfrentar o dia. Nos xinga pela pobreza, falta de verbos e eloquência. Nos limita em profissões rasas, que geralmente ficam longe das “nossas” casas. Nos colocam em ônibus como sardinhas em lata. E fingem que a pandemia está passando, pois do home office não veem quem entrega de bicicleta os “recebidos do dia”.

Ferrou-se. Enquanto escrevia essa linha teve um acidente perto da estação do VLT. Alguém sem nome machucou-se por estar fora da ciclovia. Dentro do ônibus, algumas pessoas apontaram e disseram que o homem estava errado. Uma senhora em pé no fundo comentou com a jovem do lado: “Ele devia ter se esforçado mais. Bicicleta não leva a lugar algum. Meu neto trabalha e paga  a carta automobilística. Inclusive, só faltam três parcelas”. A moçoila de cabelos escorridos resmungou: “E seu neto, por acaso, já comprou um carro?’

E por aí a bola de neve segue, engalfinhando um a um, obrigando-nos a odiar a coletividade, e idolatrar marcas de veículos. Sendo que o repúdio que deveríamos sentir é desta agregação.


Imagem em destaque: passageiras no VLT Santos/São Vicente. Por Nicole Zadorestki Caroti


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