O vírus tira escama dos olhos. Por Sérgio Sérvulo da Cunha

O neoliberalismo vinha se esforçando, há algum tempo, por esconder: que a sociedade é solidária. Ainda assim, o poder econômico tem utilizado o poder político para garantir os privilégios do sistema financeiro.


O vírus tira escamas dos olhos
Por Sérgio Sérvulo da Cunha, do Fórum da Cidadania de Santos e  da Comissão Brasileira de Justiça e Paz | De Santos (SP)

Foi o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) quem chamou de “solidariedade mecânica” a solidariedade que existe naturalmente nos grupos sociais. Não sendo normalmente visível, pode-se dizer que ela está para a sociedade assim como o esqueleto está para o corpo humano.

Alguns, por não a enxergarem, chegam a negá-la, como aconteceu com o teórico norte-americano Robert Nozick (1938-2002), um dos pilares do neoliberalismo. Ao justificar o conceito absolutista de propriedade, disse ele: “se faço algum trabalho com meus poderes e talentos, sou legitimado aos resultados desse trabalho.”

No epílogo de meu livro sobre “O nascimento do liberalismo”, comento: “essa noção é reducionista porque inexiste, no mercado, qualquer tipo de trabalho (mesmo a criação do artista ou do artesão) que seja resultado exclusivo dos talentos ou dos esforços individuais.”  O coronavírus está nos ajudando a redescobrir o que o neoliberalismo vinha se esforçando, há algum tempo, por esconder: que a sociedade é solidária.

As bases da nossa sociedade foram postas pela revolução francesa, que enterrou o absolutismo e abriu as portas para as Constituições modernas. Acontece que a liberdade trazida por essa revolução, há aproximadamente 240 anos, é a do dinheiro. Enquanto o imperador Carlos Magno só podia tomar sorvete mandando trazer gelo dos Alpes, se você tem dinheiro pode escolher o sabor que quiser, na sorveteria da esquina.

Baseado no princípio da autonomia da vontade, o contrato faz que apareça, como relação horizontal de equivalência, o que é relação vertical de dependência. Se o seu domínio sobre a política não o transformasse em poder que ensoberbece, o dinheiro poderia desempenhar, na sociedade, o papel da incógnita na equação matemática: a variável a ser trocada pelo que fosse preciso para, fugindo à impotência da necessidade, viver dignamente.

Quando a fonte da liberdade deixar de ser o lugar em que você nasceu (a favela ou o bairro nobre); quando o sinal da economia vier a ser o acesso universal aos recursos básicos (por simples adscrição, como na família); quando a inteligência artificial assumir a maior parte do trabalho, esses três fatores – uma ordem cosmopolita, a previdência social, a renda mínima – tendem a iniciar, na economia, o mesmo movimento que a derrota do absolutismo representou na política.

Ao resguardar as liberdades individuais, o liberalismo não se iguala ao individualismo. Comer é um fim individual lícito, mas a moral interpela quem come além da saciedade quando outros, à volta, estão famintos. O libertariano não pode ser chamado de liberal, porque valoriza exclusivamente a própria liberdade, mesmo que ela se erga sobre a liberdade dos demais.

As Constituições modernas reaproximam o Direito da moral. De fato, objetivo do Direito é a materialização da justiça, e não a mera reprodução de relações naturais, sociais ou econômicas de poder. Há, contudo, um descompasso entre o Direito Privado (notadamente o Direito das Coisas, o Direito das Obrigações, o Direito das Sucessões) e os direitos da pessoa humana. É escandaloso privar uma família de moradia porque o seu chefe ficou desempregado, morreu, ou está inválido.

Ao Direito Privado ainda não chegou a influência do Direito Constitucional, de modo a levar em conta o estado de necessidade, e afastar a interpretação das obrigações segundo a estrita comutatividade (buscando em seguida, nos instrumentos de solidariedade social, como seguros e fundos públicos, a proteção e garantia dos credores).

Essa a direção da história: diminuir, e não acentuar a desigualdade. O Senado, contudo, acaba de aprovar, em primeiro turno, uma proposta de emenda constitucional (PEC 10/2020, “orçamento de guerra”) que concede privilégios descabidos ao sistema financeiro, durante a crise do coronavírus.

Eis uma meta exequível: “o acesso à saúde, educação, cultura, segurança, habitação e outros itens básicos de sobrevivência devem fazer parte das prioridades absolutas. Não se trata de custos, e sim de investimentos nas pessoas, que dinamizam a produtividade e liberam recursos das famílias para outras formas de consumo.” (http://www.ihu.unisinos.br/593739-a-economia-desgovernada-novos-paradigmas-artigo-de-ladislau-dowbor).


Imagem em destaque: a mobilização do MST para levar comida a comunidades em todas as regiões do país. Foto de Joka Madruga


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