Conversa ao portão. Por Nicole Zadorestki Caroti

A troca de confidências sobre o cotidiano revela na vida vivida o que as estatísticas apontam sobre violência doméstica e feminicídio.


“Aqui nesse bairro todo mundo é Zé, mas eu sou dona”
Por Nicole Zadorestki Caroti. De São Vicente, Baixada Santista

Olho pra saia florida com plantas coloridas, sobre as quais nunca ouvi falar. Devem ser rosas, eu acho – são as únicas de que falam na TV. Devem ser rosas, repito pra mim mesma.

O chinelo branco tá ralo, todo desgastado. Preciso de outro – mas você sabe que não tem dinheiro, né?

– Sim, eu sei.

– Você prefere comprar o chinelo ou o sabão de casa. – O sabão, sem dúvidas! Chega. Não vou ficar mais pensando em mim, deveria ter pensado antes. Agora não há mais tempo. Preciso dar tempo a eles.

– Quem é você? Você lembra seu nome?

– Não importa! Todos me chamam de dona, assim eu sou.

Dona Zeca, eram oito da manhã e eu nem tinha penteado meu cabelo. Acordei hoje às quatro da matina. Esquentei o leite deles e fiz o café. O coador tá cai não cai. Tô precisando comprar outro, mas tá caro, três reais na vendinha do Zé. Ele brigou comigo hoje. Disse que eu não sirvo pra nada. Que olha pra mim e não me reconhece mais.

– E você, se reconhece?

– Não sei.

Fiz o café com coador e fui passar a roupa das crianças. Não sei se é mal contato na tomada, mas o ferro não esquenta de jeito nenhum. A Júlia começou a berrar, cê sabe que ela é birrenta. A menina gosta de estudar.

– E você se orgulha disso?

– Mas é claro. Ela precisa do destino que eu não tive.

– Destino não é algo premeditado?

– Sim, pelos olhos de Deus.

– E você acredita que ela vai dar certo?

– Vai. A estrada é longa, são quase quinze pras seis da manhã, o ônibus das crianças passa às seis em ponto. Fiz de tudo, o ferro não esquentava, aí lembrei de uma memória da vó Zefa. Peguei a panela, botei no fogo e esperei ficar pelando. Passei a panela na roupa.

– Isso dá certo?

– Deu. As roupas ficaram lisinhas. Passei o pente nos cabelos da Júlia e levei eles no ponto. O Pedro não queria ir pra escola, disse que queria uma lancheira de um tal de Max Steel.

– E o que tu fez?

– Não fiz nada. Não tenho o que fazer.

– Mandou pedir pro pai deles?

– Não! Capaz dele vir pra cima de mim, dizendo que sustenta a casa.

Deu seis e quinze e nada do ônibus aparecer. O sol quase saindo e a Júlia desesperada enchendo meu saco.

– Ela tinha algo importante na escola?

– Tinha. Prova de ciências. A escola fica lá no centro, duas horas e meia a pé. Impossível eu levar eles, ainda tenho que fazer a comida. O moleque do Seu Ribeira saiu gritando estrada acima.

– O que houve?

– Dizendo que o ônibus entalou nos buracos da estrada. Aquela ribanceira mais parece a lua de tanto buraco que tem, pior fica quando chove. Ninguém sai de casa.

– E aí?

– Peguei as crianças, voltamos pra casa. Era quase meio-dia quando ele apareceu.

– O que ele disse?

– O que essas crianças tão fazendo aqui, porra?? Quer que essa menina vire você?

– Ele gritou assim contigo?

– Gritou. Falou um monte de coisas, como se a Júlia fosse eu.

– E qual o problema dela ser tu?

– Todos, ou nenhum.

– Olha dona, eu acho que tu tinha que dar um rumo logo na tua vida. Pega essas crianças e vai pra casa da tua mãe.

– Ela não me aceita mais desde que eu casei.

– Eu sei, mas essa situação vai piorar. O que tu vai fazer?

– Eu sei, e não sei. Olha, preciso ir embora. Pegar as crianças na casa da dona Zélia.

– Mulher, se cuida. Não posso te acolher hoje aqui em casa porque tu sabe como é o Zé Roberto.

– Tá tudo bem. Fica em paz. Deixa eu ir lá.

Olho de novo para os meus chinelos brancos. Preciso trocá-los. Olho pra trás e aceno pra Dona Zeca. Agora há duas cadeiras de praia abertas de frente ao portão. Estamos no verão, logo vem o Ano Novo. Bendito seja esse ano. Repito. Bendito seja esse ano.

Escondo meu olho roxo com a franja do cabelo e vou buscar as crianças.

Atenção.​ No Estado de São Paulo, a cada 60 horas uma mulher é vítima de feminicídio. A cada dois minutos uma mulher recebe proteção contra violência doméstica no Brasil. Caso você se identificou com essa história, vá até uma delegacia e registre um boletim de ocorrência e peça uma medida protetiva. Em caso de emergência ligue para o 190.


Imagem em destaque: dados sobre violência contra a mulher. Foto de Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil


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